sábado, 29 de outubro de 2016

Dia Mundial da Psoríase 2016

Já foi pior. Já chorei copiosamente. Já deixei meus lençóis repletos de marcas de sangue. Já me cocei até me ferir mais ainda. Já deixei de usar calças jeans. Até pouco mais de um ano atrás, eram essas as minhas atitudes devido à psoríase.

Para quem não sabe, psoríase é uma doença – de pele – crônica, sem cura, dolorosa – interna e externamente –, em que o emocional parece ser o seu motor de surgimento e piora.

Aos poucos, ela passou a regredir. Atribuo isso a um trabalho que eu adorava e, principalmente, porque passei, desculpe o linguajar, a tocar o foda-se para ela. Como não tinha escolha, comecei a, de alguma forma, aceitá-la como parte de mim.

Mas ela continua presente. Ainda invejo as mulheres nas ruas com suas pernas de fora, sem marcas, sem feridas, sem lesões. Antes da psoríase, tinha vergonha de usar roupas mais curtas porque sou branquela. Hoje, por ironia, esse seria o menor dos problemas.

Biquini sempre foi um pânico, pelos quilinhos, pela branquelice, pela celulite. Hoje, as lesões são o que mais me incomoda, além do peso, é claro.

E não poderia deixar de dizer que existe o preconceito. Sofri pouco com isso, confesso. Mas já vivi momentos desagradáveis. As pessoas são cruéis, ignorantes e desumanas. Isso e a psoríase não deixam de ser um aprendizado constante.

Por sempre expor informações sobre a psoríase em um blog pessoal e nas redes sociais, “conheci” uma pessoa com quem trocamos gigantescos e-mails. Ela também tem a doença e se identificou com um dos meus textos.

Demos força uma a outra. Chorei com suas palavras, confissões e pela afinidade com a pele. Dizia a ela que só tem quem essa doença sabe realmente como nos sentimos e o que ela faz conosco.

Outros amigos também apareceram me pedindo dicas, nomes de especialistas, me consolando e me colocando para cima. Passei meses indo duas vezes por semana ao Hospital Universitário de Brasília para realizar sessões de fototerapia. O sol é o melhor amigo da pele com psoríase.

Jamais me esqueço das palavras de um rapaz, que estava sentado ao meu lado à espera da sua vez. A televisão ligada, e um programa falava sobre sonhos. Ele apenas falou: “Queria uma pele nova”. Meus olhos encheram d’água.

A minha psoríase não é das piores. Elas me marcam nos cotovelos e da cintura para baixo, inclusive nos pés. Já quiseram me dar medicação, mas, no meu caso, acho que os benefícios não valeriam a pena diante dos “sacrifícios”. Até porque a probabilidade de as lesões voltarem e serem ainda piores é grande.

E hoje levo a vida com minhas feridas e cicatrizes, literal e metaforicamente. Aprendi com ela os meus limites e a me aceitar, um pouquinho a cada dia. Invariavelmente, preciso avisar as pessoas o que tenho diante de um olhar estranho e da pele exposta. Se há repulsa, não me importo mais. É a minha seleção natural de espécies ao meu lado.

Foto tirada em agosto de 2015

Publico no blog Quadra Zero

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Faxina

Às vezes, sentimos como se precisássemos vomitar escancaradamente. Uma vontade de colocar para fora todos os gritos, desaforos, sapos, elogios, todas as broncas, cobranças, expectativas e frustrações do passado, distante ou próximo.

É como se algo fosse nos contaminando aos poucos e chegasse ao ápice. Como se tudo isso fosse necessário para chegar aonde chegamos, mas de uma forma que nos apequena ou nos faz sentir pequenos diante do mundo, até mesmo porque somos mesmo pequenos perante o universo.

Mas é como se não precisássemos nos sentir assim porque, caso contrário, nossas atitudes de nada valeriam. De tão pequenos e, em consequência, com atos tão diminutos, seríamos, portanto, inúteis neste mundo. E vemos que mínimas ações são capazes de grandes resultados.

Tornamo-nos, de certa forma, grandes graças às coisas ruins que nos acometem e aos nossos erros. Mas é preciso também nos limpar daquilo que já foi, já passou e não voltará. Porque nada retorna. Nada será mais da mesma forma. Como disse Heráclito, “ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes”.

É uma espécie de assepsia necessária diariamente, inclusive para não contagiarmos pessoas que nada têm a ver com nossos problemas ou por “descontarmos” devido a outras pessoas que passaram em nossas vidas ou simplesmente porque nada nem ninguém é igual.

A minha faxina tem sido constante. Em um dia, sinto como se gritasse até ficar rouca todos os palavrões que conheço. E, no outro, trato de cuidar da minha garganta e limpar aquela raiva, tristeza ou frustração.

Muito disso vem do dito otimismo, uma palavra que nunca entendi muito bem como funciona. O pensamento positivo gera expectativas que, normalmente, geram frustrações.

Mais jovem, era a favor do pessimismo. Minha teoria era a de que, se eu esperasse o pior, nada seria tão ruim como eu tivesse imaginado. E, assim, eu não gerava expectativas e, consequentemente, não me sentiria frustrada.

Hoje, digo que sou uma pessoa realista, um meio termo entre um e outro. Mesmo que crie expectativas, até mesmo devido aos outros ou às palavras dos outros, insisto comigo mesma para me centrar e não pender ao otimismo ou ao pessimismo.

E, ainda assim, não é fácil. Devido às circunstâncias nada fáceis, nos enganamos com alguns acontecimentos. Temos mania de achar que, desta vez, será diferente, que, desta vez, nos enxergarão, que, desta vez, será melhor.

E a vida não é assim. Ela segue ao seu jeito, normalmente bem distinto aos nossos desejos. E tenho tentado respeitar o caminho que se me impõe. Em outras vezes, ela foi sábia. E tento acreditar em sua sabedoria diante das negativas e dos silêncios.

Publico no blog Quadra Zero

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Miragens

Ela não saía do mar. Passava os dias dando mergulhos e aproveitando as ondas. Sempre ia em busca de novas praias para encontrar aquela que a fizesse se sentir melhor.

Não apreciava a pasmaceira dos mares calmos. Passava pouco tempo apenas para descansar e boiar. Ela gostava mesmo de ir fundo nas águas com a surpresa das ondas.

Havia aquelas ondas que pareciam vir grandes, e se frustrava com a fraqueza que chegavam até ela. Outras pareciam apenas uma ondulação, e ela se regozijava no meio do turbilhão

Às vezes, se perdia com as correntes marítimas que a levavam para longe. Às vezes, se machucava com pedras e rochas que desconhecia ao desbravar novos mares.

Mas aprendeu a cuidar de seus machucados. Atravessava a areia e passava a noite na mata com seus unguentos. E, no outro dia, mesmo mancando e sangrando ainda, seguia seu rumo em busca de novos mares.

Em um dia, cochilou à beira de uma praia, deitada na areia e com as pernas dentro d’água. Acordou, esfregou os olhos e não acreditava no que via. O mar havia sumido.

Incrédula, passou a percorrer milhares de quilômetros pela faixa de areia. Seus pés ardiam, queimavam. Em algumas vezes, tinha uma visão trêmula como se visse água mais à frente. Corria desesperadamente, mas era apenas imaginação.

Para descansar, passava momentos na mata, que antes verdejava com o mar, separados apenas pela areia. Dormia com a esperança de que, quando acordasse, o seu mar estivesse ali, como que tivesse lhe pregado uma peça.

Acordava e esfregava os olhos. Não conseguia acreditar. Não conseguia entender. E retornava para onde antes havia mar. Nenhum sinal de água. Encontrava apenas conchas, que a deixavam com a lembrança de seus mergulhos.

E passou a recolher as conchas o quanto pudesse. Pensava que talvez elas atraíssem o mar de volta para si, como se o fundo do que houvesse sido um dia o mar sentisse falta e surgisse para abrigá-las.

Os dias passavam e nada acontecia ou ressurgia. Passava seus momentos caminhando pela areia, queimando seus pés e descansando na mata. Sempre que dormia, esperava acordar e ver novamente seu mar.

Mas não via sinal de esperança ou mudança. E revezava seus momentos entre a areia e a mata. Talvez acabasse seus dias num ou noutro. E assim seguia seus dias e noites intermináveis…

Publicado no blog Quadra Zero

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Pequenas grandezas

Em um carnaval de rua, piso aquela água xexelenta próxima ao meio-fio. O homem que amava e de quem estava acompanhada desaparece, volta com uma garrafa de água mineral e lava meus pés e sapatos.

Em uma casa de amigos, com um vestido com fendas laterais, me cobria para que não vissem minhas lesões. O mesmo homem passa a mão em minha pele e diz que, se ele não se incomodava, eu não deveria me incomodar.

Em uma viagem de fim de semana e despedida no Rio de Janeiro, esse mesmo homem me surpreende mais uma vez. Na praia, perturbada com a minha pele, peço sua bermuda para entrar no mar. Vestido com uma cueca boxer preta por baixo, ele não hesita, e vou feliz dar um mergulho.

Um amigo que morou longe por cinco anos me mandava mensagens carinhosas como se adivinhasse os momentos difíceis por que eu passava. Um dia, enfim, decido visitá-lo e recebo a notícia de que ele voltaria na semana seguinte.

Trabalhando em outro estado por mais de três semanas sem vir a Brasília, volto para passar o aniversário com a família e os amigos. Marco cerveja e bar. Quando chego, surpresa com parabéns, bolo, balões, uma caixa recheada de mimos, além de abraços e risadas. Não é a primeira vez que a mesma amiga me “engana”.

Meus pais hoje revezam moradias em Brasília e na Paraíba. Distantes, mandam mensagens diárias para saber como estamos eu, minha irmã e os gatinhos. Meu pai ainda pergunta, frequentemente, se estou me alimentando bem devido à minha crise financeira.

Antes de viajar, minha mãe presenteia Madalena com um saquinho repleto de liguinhas (elásticos de cabelo). A “bobagem” é o melhor brinquedo desde que minha filhota é um bebê.

Minha irmã vem à casa dos meus pais uma ou duas vezes por semana para almoçar comigo e, claro, comer minha comida. Ela “reclama” que toda vez que vem “come muito”.

Amigos tentam me ajudar e mandam mensagens com vagas de emprego, seja aqui (em Brasília) ou onde saibam que existe uma oportunidade, inclusive um amigo que mora no Norte do país. Este, inclusive, sempre que pode e volta à cidade, tenta me encontrar e manda mensagem de saudades.

Para encontrar a mim e a um amigo, uma amiga de infância vegana faz um almoço para que possamos nos encontrar, conversar, saber das vidas de cada um e matarmos as saudades.

Madalena dorme todos os dias comigo. Acho que é um dos poucos gatos que não acordam os outros durante a noite. Ela já tem seu ladinho na cama, mas, às vezes, me faz dormir torta. Ela é meu bom dia e boa noite, me acompanha na cozinha, no banho e aonde quer que eu vá pela casa. E adora se exibir para visitas.

Uma amiga me convida para sua casa e para bares. Conheço sua família, sou convidada ao aniversário de sua mãe, sua filha me diz “eu te amo” e seu pai diz que precisam me arrumar um emprego depois de ler um texto meu.

Raros amigos mandam mensagens “como você está?” e, com esses, sei que não preciso responder o automático “tudo bem”.

Publicado no blog Quadra Zero

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Vida sendo vida

Desapego: uma palavra em voga hoje no mundo e na minha vida. Há três anos, sou obrigada a me desapegar de sonhos, bens materiais e sentimentos. Perda eterna de pessoas e perda de amigos. Perda de parcas conquistas realizadas. Perda de relacionamentos.

Felizmente, a morte nunca esteve muito próxima a mim, aliás, nunca esteve muito perto das pessoas mais próximas a mim. Posso dizer, até hoje, que foram poucas as pessoas que convivi e amei que agora são estrelas.

Houve amigos que pensei serem seriamente amigos, mas não estão mais na estrada que percorro. Hoje não vejo como perda, mas como pessoas que somaram por pouco tempo ou que, por conta de afinidades ou encontros e desencontros, nos afastamos ao longo de dias e anos.

Há também ingratidão daqueles que ajudamos sem pensar duas vezes. Fazemos além do que podemos ou no limite do que somos capazes e, ainda assim, parecemos que fomos tão poucos. O que um dia foi mágoa hoje me consola ser passado e aprendizado.

Alcançar determinados degraus e depois tombar até a base é que o parece deixar mais hematomas. A gente olha para trás e é como se nada houvesse significado, nada tivesse restado. A gente cai, aprende, levanta, cai de novo, e o trem não avança, regride.

Houve quem me disse que “a gente dá um passo para trás para dar mais dois logo a frente”. Naquele instante em que me desfazia de uma certa independência, isso pareceu me acalmar. Mas a tempestade passou a engrossar a cada dia, a cada minuto. Não há sinal de sol ou arco-íris.

É triste hoje andar pela casa que não é minha e ver partes do que foi a minha casa. Lembro de cada local a que fui, de cada escolha, de cada compra, de cada alegria de ver meu canto se tornando realidade. Precisei abdicar do sonho que um dia foi real. Mas não soube desapegar do que um dia foi parte da minha casa porque sei que fará parte da minha casa um dia novamente.

Costumo dizer que as “coisas” em minha vida vêm sempre atrasadas, retardatárias. Que venham, mas que permaneçam. Mas essa não parece ser a lei da vida ou, pelo menos, da minha vida. Ou, quiçá, elas sejam mais tardias ainda. E eu torço por esta hipótese.

Relacionamentos… Uma piada, mais trágica do que cômica. Como me disse um erê: “Você só escolhe merda”. Dei risada quando ouvi, claro. A autoesculhambação, como eu mesma digo, ou autossabotagem, como dizem, é uma das minhas marcas registradas. E ouvir isso de uma entidade me fez rir.

Entendi que só escolho “merda”, como ele me disse, como as chances que decido dar às pessoas que aparecem. Como saberei que são “merda” se não as conhecer? Por isso, quebrei mil vezes a cara. E o erê me quebrou de novo: “Use a sua intuição”.

Além da “merda” em si, vejo olhos me enxergarem como alienígena quando digo que, na idade em que estou, nunca casei, nunca morei junto e tampouco tenho filhos. Aliás, Madalena (minha gata-onça) é minha única filha, mas não saiu de mim nem amamentei. Me sinto um verdadeiro ET ou uma louca varrida quando vejo esses olhos arregalados. E, talvez, eu seja uma coisa ou outra.

E, enquanto o desapego cresce e se obriga em minha vida, há novos e raríssimos apegos. Novos e velhos amigos que aparecem e reaparecem. E aí parece que o desapego se vira pelo avesso. Ou é o avesso que, na verdade, é o certo. Ou não há certo ou avesso. É, simplesmente, a vida sendo vida.

Publicado no blog Quadra Zero