segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Chuva, vinho e livro

Talvez eu fosse mais sozinha se não gostasse de pele, cheiro, temperatura, cabelo. Tenho tido preguiça, preguiça de mais do mesmo. Olho em volta e não vejo nada. Talvez eu não esteja nos lugares. Tenho impressão de que parte está e outra viaja. Uma é realidade, outra, sonho. Ou apenas proteção. Os anos passam e não se permite mais a perda de tempo. Depois de ler um texto, percebo que minhas escolhas refletiam não-escolhas. Assim, decido pela solitude das noites e de um dia por semana. A literatura faz-me companhia na cama, no sofá, no dia de chuva, na vontade de um abraço. Os livros calam-me o desejo, acalmam-me a mente, levam-me fisicamente distante. Por vezes, acredito que são os culpados de uns sustos que me acometem durante as madrugadas. Suas histórias invadem meus sonhos junto com a insônia, minha ou medicamentosa. Num desses sustos, senti uma mão em meu ombro. Era uma mão sem dono. Sinto que gritei, um grito mudo. Pesadelos me vêm frequentemente. Não sei se são meus pensamentos, as histórias que invadem as madrugadas ou os efeitos do vinho ou do medicamento. Numa tarde chuvosa de domingo, elegi o vinho como companhia. Não aprecio porque traz-me quietude. Mas quis a quietude do vinho, junto com o livro de Chico, a chuva lá fora e a presença de um hóspede canino. Após uma taça e algumas páginas, as pálpebras pesaram. Impossível para mim deitar-me durante o dia. Permiti-me. Depois, retorno à taça e às páginas. Me encanto pelo personagem. Somos só nós e meu cabelo. Tenho mania de ler e fazer-me cafuné, simultânea ou separadamente. Dizem que eu sou assim já mesmo ao nascer. Alguém me desperta para fora, mas na minha preguiça eleita de interação, mantenho-me só. Novamente se me despertam. Não. Prefiro a quietude do domingo que chove. Acompanho a última taça das últimas páginas. O sono volta a arder os olhos. E decido então dormir, com os efeitos do vinho, com Eulálio das páginas, com o abraço do travesseiro, com o cheiro da fronha, com o calor do edredon.


"... e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos."
(Leite derramado, Chico Buarque)