terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Meu pretinho

Sábado à tarde. Agora me recordo que estava vestida com uma camiseta estampada de gatinhos. Havia sido a primeira roupa que havia escolhido porque acordei com o celular sem bateria e precisei ligar o computador para ver que horas eram. 10h30. Fiquei que nem louca pela casa porque eu havia me programado para renovar minha Carteira Nacional de Habilitação. O lugar só estaria aberto até as 11h. Enfiei a roupa e saí correndo. O carro estava cheio de lama da noite anterior porque havia atolado quando ia a um samba com um amigo. Não achei vaga, não deu tempo. Passava das 11h. Fui, então, à casa dos meus pais. Deixei meu carro para o Zé, um ex-porteiro que vai ao prédio lavar os carros aos sábados, dar um jeito naquilo. Então, gasto meu tempo com a família. A baianidade me bate. Almoçamos acarajé, caldo de sururu e lula à dorê. Voltamos para a cada dos meus pais. Zé ainda não havia terminado de lavar a imundície do carro. Enrolamos, e ele termina. Minha mãe me pede para ir com ela comprar uns potes de tempero na 411 Sul. Entre as duas lojas da mesma rua que ela precisa ir, me apaixono por um serzinho preto numa gaiola. Coloco a mão dentro, e ele imediatamente encosta, se esfrega e pede carinho. Me apaixono ainda mais. Minha mãe entra na loja ao lado. Eu volto. Peço para abrir a gaiola e pegá-lo no colo. A paixão é ainda maior. Amor recíproco. Vamos ao outro lado da rua marcar sobrancelha para o final do ano. Aquele felino pretinho de olhos amarelos não me sai da cabeça. Saio da loja. “Mãe, eu preciso adotar aquele gatinho”. Volto, adoto. “Só isso?” Assino um papel, pego sua carteirinha de vacina e vou com ele feliz da vida para o carro. Beijo, abraço, agarro. Enquanto dirijo, minha mãe o leva em seu colo. Paro debaixo do meu prédio. Tomo ele de volta em meus braços ansiosa para subir e ele conhecer a nova casa e a irmãzinha Madalena. Madá fica desconfiada e brava por não ser mais a dona da casa. Fico encantada com a leoa que eu não sabia que tinha e com aquele pequenininho descobrindo a casa, se escondendo atrás da geladeira quando Madá ia brava pra perto dele. Domingo. Decido dar banho nos dois. Saio para almoçar. Passo o restante do dia todo em casa. A braveza de Madoca ainda não dava sinais de amansar. Desde que mudei de apartamento, Madá descobriu o forro debaixo da cama. Desde que chegou à casa, meu pretinho adotou a minha cama como dele. Segunda-feira. Saio para trabalhar. Almoço em casa para ver o novo bebê e como a dupla ia se entendendo. À noite, passo rapidamente na casa dos meus pais e vou para a minha casa. Percebo que, aos poucos, Madá cede. Começam a correr pela casa. Pretinho adora um ratinho com guizo pendurado na porta da cozinha e a bolinha que Madá tanto também curte. Durmo absolutamente nada. Aquele ratinho com guizo faz barulho a noite inteira. Me levanto diversas vezes para ver se estava tudo bem com os dois. Terça-feira. Acordo antes das 7h porque é dia de diarista e preciso tirar as toalhas do varal. Apresento o novo morador à diarista. Agarro e beijo Madalena e José (ou Zé ou Pretinho ou Zé Pretinho). Me despeço. Pretinho, assim como Madá, parecem querer ir comigo. Fecho a porta. Vou para o trabalho. Volto para casa na hora do almoço. Madá aparece de pronto. Nada do meu pretinho. Mexo no rato com guizo e nada. Olho minha cama. Debaixo da cama. Abro os armários. Vejo atrás da geladeira. Vejo no banheiro. Abro o sofá. Acho meu pretinho. Balanço. Ele não se mexe. Vou para o outro lado e puxo ele. Imóvel, duro, os olhinhos em outro mundo, a linguinha para fora. Começo a alisá-lo. Ele está sujo de cocô. Começo a me dar conta. Começo a gritar. Coloco ele no colo. Me sujo. Meus olhos começam a jorrar lágrimas. Não acredito. “Volta, meu pretinho”. Seu corpinho vai ficando mais frio. Ligo, aos prantos, para algumas pessoas. Meus pais chegam. Meu pai quer me ajudar a fazer algo com o corpinho do pretinho. Choro ainda mais ao vê-lo num saco plástico. Não olho mais. Minha mãe tenta me consolar e fala para eu tomar banho. Acendo um cigarro. Vou para o banho. Meus olhos não se acalmam. Não almoço. Não como nada. Agarro e beijo Madá. Me arrumo. Vou para o trabalho. Não paro de chorar. Não paro de lembrar do meu bichinho sapeca pela casa e imóvel nos meus braços. Não foram nem três dias completos de alegria e carinho que ele me deu. E é tanta tristeza. Tristeza pela brevidade. Tristeza por tanto amor. Tristeza por uma despedida desnecessária. Mal tive tempo de tirar fotos suas. De tão pretinho, achava que, durante o dia no próximo fim de semana, conseguiria fazer imagens que captassem melhor seus traços, suas patinhas grandes que me faziam imaginar se tornar um gato grande, sua barriguinha grisalha. Ouvi tão pouco seu miado. Descobri tão pouco daquele gatinho que mal se punha a mão e ele se entregava. Mal tive tempo de ganhar suas mordidinhas e arranhados. Mas tive a alegria de quase três dias por um serzinho que me apaixonou à primeira vista, assim como foi com Madá. Tive a alegria de ver aquele anjinho deitado em minha cama e se derreter quando me via, de me agarrar quando fomos juntos para debaixo do chuveiro, de vê-lo provocando Madalena para brincar, de dar a notícia aos amigos de que havia adotado mais um filhote. Obrigada, meu pretinho, mas voltar para casa não terá a mesma alegria.




quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Perdi-me

Não sei dizer o que dói tanto em mim. É tanto silêncio lá fora. É tanto barulho aqui dentro. Nada aconteceu. Nada acontece. E é isso que faz tudo se contrair e explodir. Não sei se são as sobras de mim no mundo ou se é a falta de mundo nas minhas sobras. Sinto-me corroída pelo tempo, enferrujando-me com o tempo. Segui caminhos que me levaram a nada, a zero, a um buraco tão fundo que meus pés não conseguem andar direito o chão que pisam. Além de cobrir-me cada vez mais, tento encolher-me para não ser vista. Às vezes, quero ser vista, mas não me enxergam. Não há olhos no mundo. Não há tato no mundo. É sempre o silêncio de volta. Parece-me que o mundo virou um grande umbigo de tantos umbigos mirados por seus próprios olhos. O mundo não quer desajustados, perdidos, desenganados, descaminhados. Eu que nunca me deixei parar, gostaria de parar por longos instantes para curar o que se fez de mim e em mim. É como se o mundo não estivesse mais em mim e eu não participasse mais do mundo. Estou à margem, tentando equilibrar-me numa estreita calçada só de ida. Caio diversas vezes. Hesito diversas vezes. Parece que, nessas quedas, perco cada vez mais o senso de direção e o equilíbrio. Penso onde exatamente me perdi. Fui tantas nesta vida e nenhuma foi bem durável. Nenhuma foi adorável aos olhos do mundo e aos meus próprios. Não sei o que se salva em mim. E continuo seguindo no acostamento em busca de uma placa que me oriente, onde eu não caia mais e o mundo volte a preencher-me e eu ser parte do mundo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Até breve!

Uma realidade me é descida goela abaixo. Como um tijolo ou um bicho que me ocupa toda por dentro. Nada desce. Tudo quer sair. Como se meu próprio corpo rejeitasse isso que precisou entrar em mim. Sai pelos olhos e quer sair pela boca. É uma realidade que não fazia parte de mim, e agora esse bicho me come por dentro. Suas mordidas machucam. Deixo-o comer algumas partes. Outras, preciso esconder. Minhas mãos tremem. Minhas pernas tremem. Difícil ter esse bicho por dentro. Mas sei que preciso deixá-lo me morder e comer as sobras. São partes que me doem ainda mais quando ele não come. São partes que surgiram e precisam ir embora rapidamente antes que me adoeçam. Mas depois preciso matar esse bicho. Ao mesmo tempo que sei que ele me fará bem, não poderei continuar mantendo-o. Tenho receio que ele descubra algumas partes e coma-as também. Mas não sei ser sem elas. Preciso delas para continuar. Preciso ter algo por dentro. Preciso manter aquilo que ainda sou eu. Assim como esse bicho veio, ele vai embora. Ele já veio outras vezes e já foi embora outras vezes. Dessa vez, preciso manter a boca fechada para que os outros não o percebam me devorando. Dessa vez, preciso ficar com a boca fechada para que partes minhas não saiam pela boca e emporcalhem as ruas. Mas sei que sua partida é breve. Breve porque sua visita foi violenta. Ele me devora rapidamente e rapidamente estará saciado. A cada visita que me faz, ao passar dos anos, se torna mais rápida tamanha a violência com que destrói e cumpre seu papel. Não vejo a hora da sua partida e me dizer “até breve”.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Dia Mundial da Psoríase

Hoje é o Dia Mundial da Psoríase, uma das doenças com as quais preciso me acostumar e aceitar. Não é fácil. Não é só na pele que ela aparece. Não é só na pele que ela dói. Mudei meu vestuário. Há locais que não frequento. Os relacionamentos ficam mais difíceis. Brinco que são pouquíssimos aqueles que podem ver minhas pernas, que é onde ela mais se manifesta hoje.



Há dois anos, num emprego em que eu não tinha horário e precisava lidar com estresse em grande escala, as feridas surgiram nos cotovelos. Pequenas, não dei muita importância. Até que elas insistiram muito e fui a uma dermatologista: “psoríase”. Não foi a melhor notícia do mundo, mas fiquei tranquila porque era numa área pequena e não me abalava.



Hoje, dois anos depois, elas decidiram se espalhar para os membros inferiores. Brinco que sou uma onça pintada da cintura para baixo. Brinco quando sou forte. Choro quando sou fraca. O espelho, logo que acordo, me traz à realidade. Vestir-me ficou mais fácil porque as opções são poucas. Procuro calças confortáveis e vestidos e saias compridos.



Falam para eu ter calma. A psoríase tem muito a ver com o emocional. Minha natureza sempre foi meio estressada, agoniada, impaciente. E num momento em que mudo de apartamento, ocorrem mudanças a cada semana no trabalho, aproximam-se viagens no verão... É difícil ser calma com tudo isso e ainda fazer as pazes com o espelho. Uma coisa leva à outra.



Quando não me distraio e deixo a doença me abalar, vou fundo nos oceanos que deságuo. Há coisa muito pior neste mundo, é claro. Mas há momentos em que os nossos problemas têm uma dimensão mundial. Procurei uma especialista na área e hoje faço duas sessões de fototerapia por semana. Entro na cabine e sonho com a limpeza da minha pele. Saio da cama todos os dias imaginando que eu poderia ser como antes, mas a verdade grita logo cedo no espelho.

Depois de uma noite de travesseiros encharcados, decidi me expor nas redes sociais. Publiquei um texto neste blog que escrevi enquanto meu rosto se salgava. Publiquei nas redes sociais. Depois publiquei uma foto das minhas pernas manchadas. Surpreendi-me com o carinho de pessoas próximas e distantes e inimagináveis. Mas há quem não entenda eu ter me exposto, há quem me censure por mostrar a feiura, há quem se preocupe porque eu posso enfrentar preconceito.



Mas quem me conhece sabe que não consigo ficar calada diante de alguns assuntos. Senti que precisava esclarecer as pessoas sobre uma doença ainda desconhecida de muitos. Senti que eu não queria que mais alguém portador da doença se desaguasse como eu. Senti que eu precisava fazer algo. E, para isso, precisei me expor para quem eu conheço. Não me exponho na rua. Não saio com as pernas à mostra. A doença me abala demais para dar conta de olhares. Mas me “expor” para os amigos foi a forma que encontrei de apresentar e humanizar a doença.



Então, aqui está: prazer, eu sou a psoríase. E, desde que me expus, escolhi uma frase de Guimarães Rosa: “o que ela quer da gente é coragem”. Coragem a todos os portadores de psoríase!

Conheça a página e saiba mais sobre a doença.

Colaboração, fotos e edição: Ítalo Linhares e Márcio de Andrade

Matéria da Record

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Hoje não sou mais mulher

Sinto como se meu coração fosse explodir. Tenho apertado ele com as minhas mãos para mantê-lo sob controle no seu lugar. Mas, às vezes, minhas mãos se tornam fracas demais diante da vontade de ele crescer e tomar conta de mim por completo. Minhas mãos não o machucam. Ao apertá-lo, elas aliviam a dor que o inchaço me causa. Nada disso é visível, mas perceptível. Dá vontade de me transportar a uma ilha deserta para que ninguém veja minha dor. Uma dor que vem de dentro pra fora e de fora pra dentro. Tenho de me esconder do mundo e de mim mesma. Quero cobrir espelhos. Quero fechar os olhos do mundo e os meus. Sou uma pessoa melhor quando minhas mãos conseguem sufocá-lo. Quando não, sou capaz de maldizer e odiar o mundo. Não existem palavras que confortam. Não existem palavras que sejam ouvidas. Meu coração está surdo e obeso mórbido. Não sei se o exterior causa essa dor ou se essa dor intrínseca causou feridas em meu corpo. Feridas que se espalham como a doença que são. Tenho saudades e inveja do que já fui. Cada vez me cubro mais. Cada vez mais o mundo me repele e eu o rechaço. Me afogo em oceanos que eu mesma crio. Busco buracos e máscaras para me esconder. Mas não há esconderijo e fuga de mim mesma. Vejo remédios como paliativos para algo que se apoderou de mim. Invejo peles que se despem. Rejeito minha pele despida. Invejo formatos alheios. Rejeito a forma que se aumentou em mim. Desconheço-me. Reconheço-me. Metade que se me culpa, metade que se me alivia. Há uma vontade de ser só, ser inteira. Mas sou só pedaços, que ora se colam, ora se descolam. E o coração está sempre ali, como a querer explodir e jorrar até se esvair. É como se nele tivesse um peso que me impede de suportá-lo, que me impede de me deslocar, como se ele causasse e negasse a aparência deste corpo. É um coração em frangalhos. É um corpo em decadência. Atraio semelhantes, despedaçados e decadentes. Hoje entendo mais de dor, solidão e sonhos. Hoje sou uma pessoa melhor e pior. Hoje sou mãe, filha e irmã. Hoje não sou mais mulher.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Olhos mal educados

Meus olhos, por algumas vezes, foram alvo de definições. Numa vez, me disseram que eu tinha o olhar profundo, que poucos conseguiam ficar à vontade à minha frente como se eu pudesse enxergar inclusive os segredos mais subterrâneos. Na última, me disseram que meus olhos eram os responsáveis por atrair pessoas, determinadas pessoas, aquelas que, de alguma forma, sabiam traduzir ou enxergar o que neles possa haver de diferente. Sensibilidade destes e daqueles olhos. Em uma noite apenas, um par de olhos soube explicar quem eu era simplesmente pelo meu par de olhos. Como se meus olhos fossem transparentes ou falassem ou me denunciassem. Em uma noite apenas, me revelaram o porquê de meus olhos serem ímãs do que possa haver de mais diferente, supostamente estranho ou louco. E fiquei com medo dos meus olhos. Talvez devesse cegá-los. Olho para eles e não enxergo o que disse o dono de olhos jovens. Acredito porque preciso culpar-me ou culpar parte de mim. Então, parei de olhar o mundo, parei de perceber o desconhecido, parei de reparar no que me desconhece. Coloquei aquele tapa-olhos que colocam nos cavalos e direciono meu olhar apenas para o conhecido, o seguro. Cansei das esquisitices que meus olhos atraem. Ou talvez eu devesse educá-los. Mas não sei educar olhos. Descobri tarde que meus olhos são mal educados. E aqueles olhos jovens não souberam educar os meus. Aqueles olhos jovens souberam alertar para os perigos que meus olhos cansados podem trazer para perto. Aqueles olhos jovens me emocionaram com palavras e desenhos como se conhecessem por tantas outras noites estes olhos fadigados. Em uma noite apenas, olhos se encontraram, conversaram e falaram a mesma língua.

Para um artista de olhos jovens bem educados





terça-feira, 23 de setembro de 2014

Dilema de consciência

Sonho demasiadamente. É como se, ao me tocar, a realidade me ferisse. Um dilema de consciência me transporta para dentro. E, lá dentro, algo se abre. Um buraco reflete meu dilema de consciência. Um buraco que dói e traz lágrimas. É um mundo em desconstrução. É como se o mundo que eu habito desmoronasse e só eu visse e sentisse. É como se todos vissem esse mundo desabando, mas bem distante. Apenas eu o sentia internamente. É como se, mesmo sem fazer parte do buraco que se abriu, eu contribuísse por não fazer nada. E aquele buraco grita dentro de mim. Tento calá-lo. Mas ele berra. Apenas meus olhos respondem. Prédios caem. Palavras se desmancham. Valores evaporam. E preciso seguir com meu buraco gritando e meus princípios firmes, apesar do abalo que o buraco causou. Preciso porque o mundo não é a minha cidade invisível. E dói esses dois mundos serem tão distantes. Dói ver que um mundo possa ser tão díspar do outro. Seco meus olhos. Calo meu buraco. E me enclausuro em meu mundo.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Desculpantes

Cansei das minhas histórias. Preciso das suas. Verbalize. Silencie. Inunde à vontade. Conte-me suas aflições. Sou melhor para os outros. Descubro-me mais mãe que mulher. Adoto amigos, adoto pessoas. Dou colo. Faço comer, empresto a cama e lavo a roupa. Hospedo em casa e na minha vida. Desculpantes e parceiras de profundezas. Sinta-se em casa e fique por toda a vida. Aceite meus ouvidos. Palavras são apenas tentativas de conforto. Sei pouco da vida. A minha não é parâmetro para nada ou ninguém. A minha se repete e se esvazia. Há muito espaço para ouvir. Não peça desculpas ou agradeça. Preciso de histórias alheias para me encher. Preciso da angústia de outrem para substituir as minhas, que há muito insistem em ser as mesmas. Preciso de lágrimas distintas das minhas para me transportar. Preciso de um silêncio diferente do que me habita. Preciso de um grito de timbre diferente. Preciso me preencher com o que transborda dos outros. Eu que peço desculpas e agradeço.

Para uma colega que se tornou amiga, irmã e filha.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Silêncios

A tevê a cabo não funciona. O carregador do computador estragou. O telefone não toca. Os vizinhos não emitem sons. Devoro Marçal Aquino. Cama vazia. Apenas Madalena, minha gata, dorme ao meu lado. Lavo o carro na hora do almoço. Vou ao supermercado depois do trabalho. Tentativas de me mexer. Mas meu corpo não quer andar. Pernas tremem como a não quererem que eu siga. Respeito. Paro. Volto. Vou para onde me sinto bem. Bebo. Bebida me faz parecer normal. Durmo com a facilidade de um cansaço inexplicável. Acordo com as mordidinhas de Madalena no meu nariz. Enjoei de comer na rua. Invento possibilidades. Aspiro a casa. Lavo a louça. Limpo o banheiro de Madalena. Lavo roupa. Tomo banho. Volto a Marçal Aquino. Estou prestes a terminar o livro. É muito silêncio para calar a solidão.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Por que tenho tantos amigos gays?

Ouvi umas poucas vezes essas perguntas. E parei para pensar que, real e ultimamente, meu círculo de amigos gays cresce a cada dia. São pessoas que eu amo naturalmente porque me fazem bem, cuidam de quem gostam, sabem se divertir, me procuram porque gostam de mim e se sentem à vontade comigo. Já ouvi afirmação semelhante: “você sai com casais gays, mas não sai com casais heteros”. Os heteros quando encontram seu par, normalmente, ficam mais entocados em suas casas ou fazem mais programas com outros casais heteros. São poucos com quem eu, solteira, consigo sair. Convido uma, duas, três, quatro, cinco vezes e nada. Se eu estivesse emparelhada, será que topariam? Com os gays, isso não existe. Tenho inúmeras histórias de amizade e divertidíssimas com os casais homossexuais. São gentis simplesmente pela amizade. Um hetero, se e quando é gentil, normalmente, é porque tem outro interesse. Também já ouvi comentário do tipo “cuidado. Você anda tanto com gay que vão achar que você também é”. Ah... Esse é o tipo de comentário que já me irritou e hoje nem me dou ao trabalho de dizer mais nada. Não tenho que dar satisfação da minha vida ou dar prova de quem eu sou para ninguém além de meus pais e, de acordo com a circunstância, da minha chefe. “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. Sim, ando com pessoas maravilhosas, trabalhadoras, inteligentes, amáveis. Já disseram que eu deveria ser musa de parada gay e que defendo mais os gays que eles próprios. Sorri imediatamente. E eu sonho com o dia em que eu não ouça mais essas perguntas e esses comentários. Sonho com um mundo melhor, em que todos tenham os mesmos direitos a ser feliz. Já fui a casamento gay. Já dormi em casa de amigos gays. Já viajei com amigos gays. E isso deveria ser a coisa mais natural do mundo. Por que? Porque são pessoas. Que pena quem não tem amigos gays para dançar, rir, chorar, desabafar, fazer um churrasco, gritar num jogo do Brasil, ir ao casamento mais divertido da vida, combinar uma viagem, ouvir broncas e elogios verdadeiros, morrer de trocar abraços e amanhecer com uma taça de espumante. Eu amo os meus e sou mais feliz por tê-los em minha vida!

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Rita

Esta semana, foi aniversário de morte de minha avó. E fiquei a pensar sobre como é carregar uma homenagem no nome. Parte de meu nome, Rita, foi escolhido para homenagear minha avó materna. Como filha mais velha de sua filha caçula (11ª), não tive oportunidade de conhecê-la melhor ou de conviver com ela, seja pela distância geográfica (eu na capital federal, ela em Areia, brejo paraibano) ou pela distância das idades. Lembro de suas letras bordadas, pois trocávamos cartas. Lembro de sua cabecinha branca. Mas não lembro da pessoa. Não sei o que carrego dela em meu nome. Diz minha mãe que escolheu Ana para abrandar ou adoçar a dureza do nome Rita. Será que vovó Rita era durona como soam as letras? Será que o meu jeito bravo vem do nome ou da terra de origem de minha família? Numa das vezes que tive a chance de pedir autógrafo ao Lenine, ele escreveu, numa das capas dos discos, a dedicatória “para Ana Rita Moleza” em oposição a Ana Rita Durão, que, como disse, era o nome de uma escritora. Mas acredito que essa “moleza” está apenas naquelas letras pernambucanas, não nesta brasiliense de sangue paraibano. Tive problemas com meu nome quando mais jovem, pois sempre me confundiam, ainda confundem, com o nome da filha de Elis Regina ou da paixão de Roberto Carlos. Aprendi a não corrigir. Aprendi a amar meu nome. Um nome raro, cuja única homônima que conheço tem diversas coisas em comum comigo. Será responsabilidade do nome? Jamais daria nome de uma pessoa que desgosto a um filho ou uma filha. Não gostaria de chamar alguém que amo, ainda mais saído de mim, com uma lembrança desagradável. Ou talvez porque possa carregar algo não muito simpático da pessoa do nome original. Então, penso no peso que tem meu nome. Quem foi vovó Rita para que eu não estrague a herança que carrego? Espero que sua grandeza não tenha sido tamanha que eu não dê conta de levar. Espero que sua grandeza tenha sido tamanha para que ela também me alcance. É difícil saber o que vem com esse nome ou o que espero desse nome. Então, culpo Ana. Ana quebra a totalidade da minha responsabilidade. Posso ser Rita, mas sou e serei sempre também Ana. Rita, cujas palavras os pequenos não consegue pronunciar. Posso ser também Naíta, na língua das crianças. Posso ser as duas, posso ser uma, alternada com a outra. Mas Rita é inevitável. Os amigos escolhem mais este nome, talvez por combinar mais comigo ou porque é menos comum que Ana. E, há 15 anos, morria a homenageada de parte de meu nome. É muito ter o nome do amor de quem amamos. Espero que eu corresponda a tanto.

Rita e Ana Rita



segunda-feira, 12 de maio de 2014

Tão cansada...

Depois de haver decidido ser feliz em todas as escolhas, acordo com um cansaço sobremaneira. Senti-me cansada com tudo o que de inusitado tenha surgido. São tantos fatos e tantas experiências inesperados que me esgotaram qualquer disposição. Não que surpresas não sejam bem-vindas, mas a fadiga prevaleceu diante de tanto acaso. É como se de tanto ter me aberto, agora eu gostaria de fechar-me. Mas, se eu me fechar, nem o que há de bom poderá me alcançar, mas me livrarei da loucura que atraio no mundo. Mas, para eu continuar aberta, falta-me energia. É como se houvesse, ao mesmo tempo, muita vida ou nada dela. Muitos vazios. Muitos pequenos momentos cheios de vida. Mas talvez eu queira apenas um momento grande cheio de vida. E não dá para prever ou saber se ele virá. Parece que a vida é uma grande inércia, percebamos ou não. É como se eu quisesse preencher todos os segundos diários e, ainda assim, é como se eu não preenchesse nada. Se eu não tiver mais a loucura do mundo perto de mim, sentirei falta? Ou estou cansada da lucidez constante que me denuncia a loucura presente? Vejo os outros e invejo a aparente normalidade. Mas talvez todos sejamos loucos ou tenhamos algo de louco. Não sei esperar. Tenho mania de viver. Tenho mania de dar chance. Vivo a estupidez e a intensidade até porque só vou saber o quanto estúpido ou intenso seja vivendo. Não padeço do “e se”. Só estou cansada de tudo e nada, como se tudo e nada fossem ou pudessem ser a mesma coisa.

segunda-feira, 31 de março de 2014

...

Acordei ínfima. Vi tudo tão pequeno, tão mínimo, tão insignificante, tão inútil. Nada faz sentido. Nem o caminho rotineiro, nem o passar das horas, nem a comida a ser mastigada, tampouco o trabalho a ser feito. Senti-me como se não me pertencesse. Estranhei o corpo que habitava, estranhei a razão das oito horas diárias, estranhei qualquer palavra verbalizada. Como se tudo fosse tão estranho de tão automatizado e sem qualquer sentido, norte, vocação, desejo. Nada familiar nessa estranheza toda. Nem o céu ao amanhecer nem o céu que escurece. Uma preguiça da ignorância própria que não se descobre. Uma inércia que é ela própria que leva o corpo ao banheiro, as mãos a digitar, a boca a responder. É como se meu cérebro tivesse se transportado ou tirado férias. Gestos programados, horários ditados, respostas fabricadas...

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Chuva, vinho e livro

Talvez eu fosse mais sozinha se não gostasse de pele, cheiro, temperatura, cabelo. Tenho tido preguiça, preguiça de mais do mesmo. Olho em volta e não vejo nada. Talvez eu não esteja nos lugares. Tenho impressão de que parte está e outra viaja. Uma é realidade, outra, sonho. Ou apenas proteção. Os anos passam e não se permite mais a perda de tempo. Depois de ler um texto, percebo que minhas escolhas refletiam não-escolhas. Assim, decido pela solitude das noites e de um dia por semana. A literatura faz-me companhia na cama, no sofá, no dia de chuva, na vontade de um abraço. Os livros calam-me o desejo, acalmam-me a mente, levam-me fisicamente distante. Por vezes, acredito que são os culpados de uns sustos que me acometem durante as madrugadas. Suas histórias invadem meus sonhos junto com a insônia, minha ou medicamentosa. Num desses sustos, senti uma mão em meu ombro. Era uma mão sem dono. Sinto que gritei, um grito mudo. Pesadelos me vêm frequentemente. Não sei se são meus pensamentos, as histórias que invadem as madrugadas ou os efeitos do vinho ou do medicamento. Numa tarde chuvosa de domingo, elegi o vinho como companhia. Não aprecio porque traz-me quietude. Mas quis a quietude do vinho, junto com o livro de Chico, a chuva lá fora e a presença de um hóspede canino. Após uma taça e algumas páginas, as pálpebras pesaram. Impossível para mim deitar-me durante o dia. Permiti-me. Depois, retorno à taça e às páginas. Me encanto pelo personagem. Somos só nós e meu cabelo. Tenho mania de ler e fazer-me cafuné, simultânea ou separadamente. Dizem que eu sou assim já mesmo ao nascer. Alguém me desperta para fora, mas na minha preguiça eleita de interação, mantenho-me só. Novamente se me despertam. Não. Prefiro a quietude do domingo que chove. Acompanho a última taça das últimas páginas. O sono volta a arder os olhos. E decido então dormir, com os efeitos do vinho, com Eulálio das páginas, com o abraço do travesseiro, com o cheiro da fronha, com o calor do edredon.


"... e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos."
(Leite derramado, Chico Buarque)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Uma saudade...

Descubro uma saudade. Descubro que sinto falta daquela ansiedade. Aquela ansiedade do reencontro. Sinto falta daquela empolgação, de querer estar perto, de sentir-se perto e longe, de sentir-se perto mesmo distante. Sinto falta do arroubo, daquele abraço que não quer se desabraçar, daqueles beijos que se encontram. Sinto falta de sorrir gratuitamente ao acordar. Sinto falta de sorrir gratuitamente ao dormir. Sinto falta de sorrir gratuitamente em qualquer momento. Sinto falta de me surpreender com um olhar, um sorriso. Sinto falta de me surpreender com palavras e quereres. Sinto falta de encontrar e não querer se desencontrar. Sinto falta de descobrir um mundo. Sinto falta de descobrir-me. Sinto falta de abrir-me a um mundo. Sinto saudades de me jogar, de mergulhar e flutuar. Sinto saudades de sentir-me viva. Sinto saudades de sentir-me parte. Saudades de um tempo que passa devagar e rápido. Saudades de pensar e lembrar. Saudades de uma saudade que aperta, que não se mata e é a todo instante. Uma saudade da saudade que se canta, que assovia, que se lê, que se diz, que grita. Uma saudade que me é primeira e que se vê saudade triste por sentir-se saudade. Uma saudade sem prazo.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Com licença, mundo.

É triste descobrir que certas coisas acontecem em nosso corpo. E não gosto do verbo acontecer, mas é exatamente essa a palavra. Lembro-me de um dos primeiros chefes que tive em minha vida. Ele me contaminou com a birra ao verbo. Acontecer, para ele, era quase como um aparecimento de uma entidade. E é isso que, às vezes, acontece com o nosso corpo. Há coisas que fazemos que propiciam o surgimento ou que corremos o risco e elas aparecem. Mas outras não. Há aquelas que simplesmente vêm para nos deixar tristes. Existe controle. Não há regresso. Existe o conformismo. Não há cura. Elas começam pequenas, mas podem se espalhar. Elas começam com sintomas e podem se tornar graves. E se só mexesse internamente, talvez fosse mais fácil. Mas não, elas são exibidas, têm que se mostrar para nós e para os outros. E eu cada vez mais gostaria de entrar para dentro de mim mesma, esconder minhas marcas, meus aumentos, minhas feiúras. É como se a vida quisesse piorar aquilo que justamente nos incomodou a vida inteira. Como costumo dizer, nunca estrago o que não gosto, é sempre o que mais gosto. E assim é no corpo. As coisas aparecem como que por provocação, nos lugares que mais prezamos ou naqueles que toda a vida mereceram mais atenção porque já tinham alguns mínimos problemas. Disseram-me que é a idade. Respondi, no auge do meu humor, que só se eu tiver envelhecido 20 anos em quatro meses. Não existe diálogo. É apenas um silêncio solitário e triste. Preciso de tempo para aceitar e me conformar com um novo formato de mim mesma. Ainda não consigo. Tenho esperanças, mas sei que são esperanças com grandes chances de frustração. Imagino tudo o que possa existir de mais grave, mais doloroso, mais difícil e mais feio no mundo. Mas hoje pedi licença ao mundo. Deixe-me com minha tristeza. Deixe-me com a música no volume mais alto para nem ouvir a mim mesma. Deixe-me com o pior de mim. Deixe-me esperar surgir o melhor de mim. Permita-me que eu corra e deixe pedaços de mim no caminho. Dê-me um tempo de egoísmo que já volto, mundo. Com licença.