quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O mendigo da Esplanada

Divagações sobre um homem à margem da sociedade que circula entre os prédios do Poder Executivo da capital federal

Quem trabalha na Esplanada dos Ministérios ou vai lá com frequência provavelmente sabe de quem vou falar. Durante os quase dois meses em que prestei serviço num dos prédios ao lado direito de quem segue em direção ao Congresso Nacional, prestava atenção a uma figura que perambulava todos os dias entre os imponentes edifícios. Ao chegar pela manhã, ao sair para o almoço, ao descer para fumar, era raro não me deparar com ele, um homem de uns 35 anos – mas não me levem a sério, sou péssima para chutar a idade das pessoas. Posso dizer que é negro, de barba, nem magro nem gordo, de estatura média.

O que me intrigava neste homem não era o fato de apenas encontrá-lo sempre nas redondezas porque, é claro, sempre vemos aquelas mesmas pessoas no local onde trabalhamos. Seguia-o com o olhar porque sempre o via andando ou deitado no chão da Esplanada, com suas vestes rotas, pés descalços, mas, nunca, nunca mesmo, o vi pedir nada a ninguém que por ali caminhasse. Nem dinheiro, nem comida, nem cigarro. Posso apenas dizer que já o vi pegar as bitucas jogadas ao chão pelos fumantes que passavam próximos a ele. Talvez, em um desses momentos que não presenciei, ele tenha pedido a alguém, pelo menos, um isqueiro emprestado.

Nas lentas subidas do elevador e nos rápidos instantes de manutenção do vício da nicotina, divagava sobre aquela figura que via todos os dias. O que fazia da vida? Tinha família? Como comia? Tinha casa? Tinha tido problemas com drogas? Era impossível ter qualquer pista daquele solitário caminhante da Esplanada dos Ministérios. E era sempre só. Não tinha um amigo e tampouco era acompanhado pelo melhor amigo do homem, um cachorro para companhia mútua. Lembrava-me, nesse instante, de uma figura que também atraiu a minha atenção em São Paulo, nas proximidades da Rua Augusta. Este era já um senhor de cabelos grisalhos às margens da sociedade que perambulava sempre acompanhado de seu enorme cachorro. O animal parecia-me doente, pois era carregado numa espécie de carrinho de supermercado. Encontrei-os umas três vezes enquanto estive na metrópole e admirava o carinho entre ambos.

Mas com o mendigo da Esplanada nem isso, ninguém, nem um animal, para fazer-lhe companhia, para dividir um prato de comida, para diminuir a solidão. Como ele conseguia viver os dias, as horas, os minutos, sem ter um papo e sem ter um bicho que seguisse seus passos? Aprecio alguns momentos de solidão, mas me incomodam demasiadamente quando se prolongam por vários dias. Acredito que o ser humano não tenha sido feito para ser só porque a vida é uma eterna e constante troca. Mas para ele não parecia fazer falta, ou fizesse e ele precisasse aceitar a sua condição. Talvez alguém já tivesse se aproximado dele e ele tivesse afastado qualquer interação com o mundo que o havia marginalizado ou que ele próprio havia repelido. Talvez ele não aceitasse o mundo da forma como o é e por isso preferiria viver no acostamento a viver na pista principal ou na via de mão dupla.

E outra pergunta para que tampouco ja - mais tive resposta, nem mesmo uma pista: por que não pedia nada a ninguém? Sempre vejo os pedintes pedindo. Sempre vejo os mendigos mendigando. Definitivamente, ele não é um pedinte, pelo próprio significado da palavra. E mendigo? Pelas definições do Dicionário Houaiss, ele não o seria porque não pede esmolas. Mas “valer- se da caridade alheia”? Nunca o vi pedindo, mas talvez ele sobrevivesse da ajuda dos que eram invisíveis aos meus olhos. Como todos, ele precisa comer. E acredito mesmo que provavelmente alguém lhe entregasse um prato ou um pão em determinadas horas do dia. E, por isso, apelidei-o de o mendigo da Esplanada. Precisei dar nome para saber como me referir a ele.

Às vezes o via caminhando com seu cobertor sobre um dos ombros. Às vezes o via deitado – momento em que eu mais fantasiava a respeito de sua história – sob a copa de uma grande árvore, de barriga pra cima, pernas estendidas, olhos abertos, ou fechados. Esse detalhe eu não conseguia ver, pois tinha receio de me aproximar e incomodá-lo com a minha curiosidade. Assim como já quis descobrir quem era ele, mas seu silêncio e sua individualidade impunham tal respeito que me impediam, naturalmente, de qualquer investida. Cabia a mim apenas imaginar como seria a vida dele.

Já não trabalho mais por lá, mas, de vez em quando, a imagem do “mendigo da Esplanada” volta à minha mente como a me perguntar quem é aquela pessoa tão sozinha, calada, aparentemente autossuficiente e, na realidade, tão próxima, mas ao mesmo tempo tão distante. No centro do poder do Brasil, por onde circulam servidores públicos e autoridades do governo, entre as obras de Oscar Niemeyer que atraem tantos turistas e maravilham os brasilienses, estava ele, com sua simplicidade a se destacar.

Quiçá eu tivesse trabalhado mais tempo por lá e soubesse algo de sua vida, tivesse ouvido a sua voz ou mesmo ele me pedisse algo. Ou talvez alguém me contasse causos daquela pessoa que eu via apenas ali, entre os ministérios, andando ou descansando, ou dormindo. Mas um dia outras figuras provavelmente vão me intrigar e o “mendigo da Esplanada” será apenas uma lembrança quieta entre tantas outras inquietas. E é bom que não se fechem os olhos para não enxergá-las (pessoas). O dia em que o mundo estiver completamente cego para figuras como o mendigo da Esplanada e o senhor e seu cão, certamente será o dia em que o mundo não mais se perceberá como mundo.

Crônica publicada na 7ª edição da revista MeiaUm

sábado, 24 de setembro de 2011

Um mês

Eu que sempre amei a imprevisibilidade, as surpresas, não suporto a ideia de não saber nada do que virá, nem sequer, do que não virá. Quer dizer, imagino a inércia, mas, no fundo, espero que não seja ela a convidada repentina e rotineira. Como é possível tudo mudar tão inesperadamente? Seria um castigo? O que fiz de tão errado? Sonhar? É, talvez eu tenha sonhado demasiadamente, talvez eu tenha me superestimado, imaginado uma vida em ascensão, lenta, mas sem pausas. Mas hoje se completa um mês de interrupção de planos, de lágrimas que vêm e vão, de leituras, espero, não em vão. Sinto-me a par de tudo que acontece, nada do que acontece me afeta. Estou só. Todos estão envolvidos em suas vidas movimentadas, com o saldo a sair e entrar. O meu vai pingando dia a dia pelo ralo. Conto os centavos para que a receita de dias passados me mantenha pelo maior tempo possível. Não sei planejar a vida daqui uma semana. O fim do ano se aproxima e ele parece ainda mais terrível que os anteriores. Dois anos atrás, me preparava para realizar a viagem dos meus sonhos. Hoje não sei o que fazer com os dias mais lentos de toda a minha vida. De fato, nunca havia pensado sobre essa situação, jamais me preparei para esta condição. E, por mais que eu pergunte, não há respostas. A única frase que se me repetem... “Vai dar tudo certo”. Por que dizem isso? Uma forma de dizer qualquer coisa? Uma forma de ter que dizer alguma coisa? Como vai dar tudo certo? Eu não sei dizer nada a mim mesma. Desaprendi as leis básicas da vida. Aprendi mais um lado triste da realidade. Experimentar, como digo, é, definitivamente, o verbo da minha vida.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Mau tempo

Segregaram-me. Encarceraram-me. Vivo na cela de meus pensamentos. Estes me ferem gravemente. Vejo o mundo lá fora. Não pareço mais pertencer-lhe. As horas que antes voavam, agora passam como a me torturar. Os pesadelos não habitam mais apenas as noites. Acordar é como entrar num sonho ruim repetitivo. Os dias agora são todos tão iguais. Nem uma boa notícia. Vivo uma reportagem mal escrita que ninguém editou. Ouço um violão distante. Ele não me leva pra fora, traz-me mais para dentro. A trilha sonora da velocidade de minhas lágrimas. Meus pés não ultrapassam a porta. Não há motivo. Não sinto calor. Sinto frio pela desnecessidade de locomoção. Olho o espelho. Não me reconheço. Ou jamais me conheci. Meus sonhos foram inundados, meus planos, fuzilados. Resta a esperança de a página virar...