sábado, 28 de junho de 2008

Minha cidade invisível

Após tantas viagens, finalmente descubro a minha cidade. Reconheço-a de longe ao ver um arco-íris que a envolve de ponta a ponta. É uma ilhota à altura da linha equatorial. Seus dias são sempre belos, de um céu maravilhosamente azul, com esparsas nuvens que quebram a sua monotonia e de uma areia branca onde jamais se queimam os pés.

Nesta cidade, trabalha-se no que se gosta. Não é preciso gostar do que se faz. E, sempre que desejável, pode-se alternar entre vários serviços para que o tédio não estrague a harmonia do lugar. Não há salário, não há férias, não há 13º, não há competição. Todos têm o que precisam na exata medida de sua necessidade.

Acorda-se todos os dias com o revoar e o assobiar dos bem-te-vis, passa-se o dia com o samba de Cartola e dorme-se com a bossa-nova de Vinicius de Moraes. Sua temperatura não exige agasalho, mas, à noite, uma fina chuva esfria para que os amantes se aconcheguem e durmam sempre abraçados para manter o sentimento aquecido ou para sentirem a necessidade de fazerem as pazes após um desentendimento.

Lá, fala-se espanhol, inglês, russo, italiano, alemão, esperanto, francês, enfim, qualquer que seja a língua de sua origem. Todos se entendem e, depois de lá permanecidos, falam o idioma que bem entenderem na hora que desejarem. Come-se a comida que desejar fazer, mas há abundância de natureza para todos os lados. Animais convivem em consonância com todos. Eles transitam onde o instinto lhes direcionar, onde o cheiro do alimento os agradar, onde houver mãos que lhes acariciem.

Nela, homens e mulheres têm a aparência que quiserem. Um dia, podem ser ruivos, noutros, negros; assim como delgados e rechonchudos; altos e baixos; ter cabelos encaracolados e escorridos; olhos claros e escuros. Isso não lhes atrapalha a identidade. Todos se reconhecem pela essência, pois educaram seus olhos para a janela da alma.

O amor não é líquido ou volúvel como em outras cidades mais modernas. Desde sua existência, cada um encontra o seu par a seu momento. E não há pressa ou compromisso formal. O acordo é feito com a primeira troca de olhares no reconhecimento de um por o outro. Não existe traição, troca ou cobiça. Eles assumem o outro pela pureza do sentimento, pela compreensão de suas características e pela sabedoria de sofrimento anterior.

A cidade não é perfeita como parece. Todos se esforçam pelo bem-estar geral, pela construção da harmonia, pela compreensão das diferenças, pela exigência da felicidade do outro. Tudo isso eles aprenderam com as passagens em outras cidades. Nenhum habitante da ilha nasceu por lá. Chegam lá os que buscam por ela. Antes de lá atracarem, eles trabalharam por dinheiro, tiveram inúmeros parceiros, experimentaram o sexo pelo prazer imediato, usaram máscaras para agradar ou se esconder, tiveram suas frustrações, decepções, sofrimentos, dores e lágrimas.

Cansados de aparências, de dor e da busca incansável da verdade, eles partem de suas cidades como nômades, pois é sabido que quem deseja chegar à ilha, mais cedo ou mais tarde, encontra-a. Às vezes, demora-se mais ou menos para encontrá-la, mas é para aguçar a curiosidade, a ansiedade e a alegria de se deparar com o sonho realizável.

Para que os malefícios de outras cidades não a contamine, o paraíso esconde seus mistérios. O chão do oceano que a circunda é constituído de pedregulhos afiados que impedem a passagem da mentira, da hipocrisia, da falsidade, da dissimulação. Os poucos indignos que lá chegam não conseguem pisar a areia fina que cobre a cidade.

Esta não é Eutrópia, Leandra, Zobeide, entre tantas outras cidades de Italo Calvino. É Bonsonho de uma estrangeira que vive em sua ilha todas as noites, além das visitas que realiza durante o dia em que não suporta a cidade visível. De Calvino, ela pega emprestado o sentido das viagens:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
(CALVINO, Italo. As cidades invisíveis, p. 150)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Puta que pariu!

"Puta-que-pariu" é apenas o nome que se dá àquele negocinho no teto do carro para ajudar na hora do temor ou para servir de auxílio.
"Puta que pariu" é aquele palavrão que se diz quando nos machucamos. Este eu recomendo, ou melhor, recomendava dizê-lo em alto e bom som, pois reduz absurdamente a dor.
Hoje dedico o meu dia ao "puta que pariu" – grande companheiro nos últimos meses, mas que decido abandonar a nossa intensa relação. Não quero mais essa palavra no meu vocabulário ou na minha vida. O negocinho continuará no meu carro a me lembrar do que sou capaz, para acudir quem ali se sentar e, para parafrasear Fernando Pessoa, de como nada vale a pena se a alma é pequena.
Uma homenagem ao todos "puta que pariu" ditos, berrados, calados.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Grande poetinha

Para não escrever bobagem hoje, transcrevo um texto em que bastaram duas mãos para copiá-lo e um coração para compreendê-lo.

Soneto a Quatro Mãos

Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
(Paulo Mendes Campos e Vinícius de Moraes)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Eternos aprendizes

Uma mulher sentada ao meu lado chora. Sinto sua respiração engolir o choro e seu suspiro que busca a calmaria. Suas mãos tentam encobrir o rosto molhado de lágrimas quando tento observá-la de soslaio. Espiono-a com a intenção de descobrir sua aflição. Seguro minha mão direita, que parece querer tocá-la como se um gesto de carinho de uma desconhecida pudesse apaziguá-la. Não a toco, não lhe direciono mais o olhar. Descubro que a dor ao meu lado talvez seja a minha mesma e, por isso, não precisaria encostá-la. Sua presença ali me conforta, mas não posso causar-lhe a mesma impressão, pois seu sofrimento é latente e em nada atenta a não ser o seu encontro com as músicas cantadas ao longe e que tocam alto dentro de si.

Mas, por alguns momentos, esqueci-me de mim mesma e da minha angústia. Passo alguns instantes pensando: o que será que lhe dói tanto? Um coração partido? Uma perda irreparável? Um adeus consentido? Uma morte inconformada? Destinos separados? Uma perda lhe doía, não importa o nome que se lhe dê – morte, separação, distância. Vi-me intrigada com o que a machucava. Era como se o que eu sentisse fosse demasiado pequeno perto do seu sofrimento, apesar de ser uma incógnita. Paradoxalmente, a sua emoção me incomodava e me aliviava. A percepção de uma dor aparentemente maior tão próxima a mim fez-me crer na ridicularia do que eu sentia.

Então, volto a minha atenção para o palco e para o significado das letras do cantor e compositor Luís Gonzaga do Nascimento Júnior, mais conhecido como Gonzaguinha, interpretadas pelo seu filho Daniel Gonzaga. Convidados representavam as facetas e os momentos do grande artista. Abaixo, transcrevo duas músicas que tocaram demasiadamente as duas espectadoras e que lhes fez sentir menos estrangeiras na dor:

“Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder
O que não dá mais pra ocultar e eu não quero mais calar
Já que o brilho desse olhar foi traidor
E entregou o que você tentou conter
O que você não quis desabafar

Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar
E se perder e se achar e tudo aquilo que é viver
Eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim
Como se fosse o sol desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor desta manhã

Nascendo, rompendo, tomando, rasgando, meu corpo e então eu
Chorando, sorrindo, sofrendo, adorando, gritando
Feito louca, alucinada e criança
Eu quero o meu amor se derramando
Não dá mais pra segurar, explode coração...”
(Explode Coração)

“Se me der um beijo eu gosto
Se me der um tapa eu brigo
Se me der um grito não calo
Se mandar calar mais eu falo
Mas se me der a mão
Claro, aperto
Se for franco
Direto e aberto
Tô contigo amigo e não abro
Vamos ver o diabo de perto
Mas preste bem atenção, seu moço
Não engulo a fruta e o caroço
Minha vida é tutano é osso
Liberdade virou prisão
Se é amor deu e recebeu
Se é suor só o meu e o teu
Verbo eu pra mim já morreu
Quem mandava em mim nem nasceu
É viver e aprender
Vá viver e entender, malandro
Vai compreender
Vá tratar de viver
E se tentar me tolher é igual
Ao fulano de tal que taí

Se é pra ir vamos juntos
Se não é já não tô nem aqui”
(Recado)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Ser grande

Para quem não viu ou não decodificou o que anda escrito em meus passos, torno ainda mais pública minha homenagem ao poeta Fernando Pessoa.

Meu pedido de cautela foi, certas vezes, não correspondido ou o foi em demasia. Mas não custa nada avisar... :-)

Meu presente de 26 anos

“Para ser grande, sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha,
Porque alta vive.”
(Ricardo Reis – Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa: el tesoro en el arca

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Valentine's Day ou Dia dos Valentes?

Neste dia em que os namorados celebram o sentimento de estarem juntos, deixando a data comercial de lado, me recordo de uma história que ouvi pouco tempo atrás. Era uma vez um casal de velhinhos que estavam juntos há muitos anos e muitos anos. Desde jovens, eles escolheram a sua estrela no céu e, até a velhice, mantiveram o costume de, todas as noites, pararem para contemplá-la. Ela adoeceu, e ele passava dias e noites lhe contando histórias, declamando poemas, dos outros e de sua autoria, lhe fazendo carinho e companhia, amando-a em todos os instantes. Um dia, o destino quis que ela que ela se encontrasse com a estrela. Mas o seu amor permaneceu distante, apenas fisicamente, pois, todas as noites, até hoje, ele pára para admirar as suas duas estrelas.

Uma história e um sentimento lindos, simples e verdadeiros. É essa a estrela que quero que brilhe em minha vida e na de todos que acreditam na sua possibilidade e que a façam possível. Feliz Dia dos Namorados ou dos Enamorados, como disse uma querida amiga!

E uma homenagem a todos os amantes, amadores e amados:

“Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
A cada despedida
Eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Prá te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida”
(Vinícius de Morais/Tom Jobim)

sábado, 7 de junho de 2008

Imbróglio dos setes

Seguia a minha vida quando, de repente, não sei como, tropecei. Mas não foi um tropeço numa pedrinha. Bati a cabeça numa árvore enorme que estava à minha frente que não pude enxergar tamanha era a minha vontade de seguir o meu caminho sem desvios. Era uma árvore linda, majestosa, robusta. Até hoje me pergunto como não pude enxergá-la e não ter podido me afastar e, logo após, voltar ao meu caminho. Mas não, na minha teimosia de continuar onde estava, fui de encontro a algo mais forte do que a minha vontade.

E levei um tombo tão majestoso quanto à árvore que permaneceu ali, imóvel, sem balançar um só galho, sem deixar cair uma só folhinha. E eu dormi por alguns bons momentos. Desse cochilo, quis jamais acordar. Foram os mais belos delírios de uma vida irreal. E, ao mesmo tempo, foram tão reais que os hematomas permanecem por todo o meu corpo. É como se eles existissem para me lembrar que foram somente sonhos oriundos de uma terrível queda.

Sinto insistentemente a dor do tombo, mas a saudade daqueles sonhos mais lindos teima em superar as feridas. Nos delírios, fui a lugares desconhecidos, distantes, extraordinários. Conheci outros mundos, experimentei sensações, vi diferenças. E imaginei porque eu estaria ali com todos aqueles sonhos. Seria eu desejando aquilo tudo, a vida me mostrando que posso realizar meus sonhos ou simplesmente sonhos? Não sei e, talvez, jamais saberei...

Dizem que as quedas são necessárias para sabermos nos levantar e que, dali em diante, seremos mais fortes ao nos depararmos com outra árvore. De repente, em uma iminência de novo tombo, eu seja tão mais forte que nem um elefante me derrubará do meu caminho. Enquanto tratava minhas feridas, esbarrei com um estrangeiro que já havia cruzado meu caminho algumas vezes, antes mesmo de sofrer o tombo. E ele me cochichou ao ouvido: “descobriste a verdade do perder para ganhar”.

No momento, achei que esse imigrante reapareceu muito antes do que deveria ou eu mesma tendo a não querer acreditar na verdade surda que me grita. Não sei se a verdade foram os sonhos ou são os hematomas. É uma bola-de-neve de impressões que não consigo decodificar. E dizem também que o tempo é o sábio que nos fará superar e enxergar tudo mais claramente. Mas que malditas quedas e maldito tempo que nos machucam e não sabemos curar! Meu caminho é tão curto que preciso decifrar logo para saber se entro à esquerda, viro à direita, faço o retorno ou vou reto toda a vida. E meu caminho é tão longo que não quero mais o castigo dos hematomas sem saber por que vieram.

Quiçá os sonhos junto à dor de depois foram um sinal de: sonhe, mas acorde; viaje, mas retorne; voe, mas ponha os pés no chão. E qual a graça de sonhar e depois permanecer acordado, de viajar e passar o tempo todo no mesmo lugar, de voar e os pés nunca mais levantarem? Talvez porque precise estar fincada à realidade para, em breve, voar ainda mais alto? Isso dá uma impressão tão estranha quanto tudo o que foi. Por mais que ainda possa haver muitos passos à frente, a impressão que tenho é que sonhar algo melhor seja impossível.

Após algum tempo, sinto, inesperadamente, um abraço carinhoso de longe. Viro-me para saber quem era, mas não a conhecia. Era uma fada que me trazia a solidariedade distante, de haver sentido necessidade de ajudar a cuidar das minhas feridas, pois, assim, também o fazia consigo há algum tempo. Sinto, desde o primeiro abraço, que ela, pequenina, me acompanha, sentada em meu ombro, como se soubesse o bem que ela me faz. A companhia da vivência e sofrimento semelhantes.

Aqui, parece fazer sentido o “perder para ganhar”, mas ainda não traz toda a carga pesada de perda e ganho. Ainda não consigo traduzir o sussurro do solitário que perambula pelo mundo e me visita esporadicamente. Será que perdi estes sonhos para eles virem novos e ainda mais belos em breve? Mas me apeguei a eles e não sei se quero me libertar. Será que os sonhos foram para mim a minha terceira perna de que fala G.H.?

“assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar”, confidenciou-me G.H. antes mesmo de eu cair, mas parecia pressentir o que podia me acontecer.

Se, pra mim, tudo não passou de uma terceira perna, é tudo ainda pior. É uma morte ainda maior. É uma morte de mim. Mas se, tampouco for a terceira perna, é luto de toda forma, pois parte de mim foi embora. E o que se faz quando parte de si se quebra, desmorona, parte, desintegra, vai embora e diz adeus? Conformar-me? O diabo é que sempre odiei esta palavra: conformar-se. Na terceira, segunda, milésima pessoa, tudo bem, mas na primeira? Respeitar é uma coisa, entender e aceitar são bem diferentes.

Costumo dizer que... Vamos colocar um homem, uma mulher e um chifre. O homem está insatisfeito e envolve uma terceira pessoa na história. Entende-se que ele tenha feito isso, mas não justifica a sua atitude. E costumo dizer isso em relação a várias coisas sobre as quais refleti alguns ou zilhões de instantes. Havia um exemplo melhor, mas achei preferível relatar um caso comum para não incomodar. E, assim, sou: analiso daqui, reflito dali, examino acolá. Mas, quanto mais faço isso, mais hipóteses surgem. Seria melhor não pensar nada? E como não pensar nada de nada em nada por nada?

Sonhos? Terceira perna? Perder para ganhar? Há ainda tantas hipóteses. Existem os famigerados ditados: “a vida dá voltas”, “aqui se faz, aqui se paga” e “quem ri por último, ri melhor”. Acredito, em parte, porque já fui vítima deles nas mais ínfimas circunstâncias. Sobre a outra parte, não comento porque acho detestável a alegria sobre o sofrimento alheio. E, pasmem, poucos pensam assim. Um dia, li que alguém achou saborosa a idéia de haver se tornado o prato principal enquanto as migalhas haviam sido desprezadas. E é nessas horas que o ser humano me enoja.

Aos poucos, a idéia do ganho após a perda parece fazer sentido. Palavras doces, gestos gentis, carinhos gratuitos, novos amigos, reencontros de velhos amigos, situações inesperadas. Presentes vieram depois da privação. Demorei a perceber isso, mas não há como negar que a vida me surpreende dia após dia. Subitamente, paro para pensar em reconhecimento pelo que fiz enquanto sonhei. Foram sonhos em que me dei e me doei inteiramente, mas ou foram somente sonhos e não há porque gratificação, ou porque não devemos jamais esperar reconhecimento do que quer que seja.

Pois, então, torno-me uma grega que dança pelo prazer de dançar sem aplausos, como me disse o estrangeiro: “Somos educados num regime de gratificações. Elas vêm de Deus ou da sociedade. Isto um dia me fez pensar o oposto, e associando agora à consideração de ser uma estrutura aberta, pergunto se o homem não será algo parecido com o grego do filme: quando dança, não quer aplausos. Um grego quando dança é porque está contente. Pergunto: não será o homem algo que quando vive não precisa de aplausos, vive porque tem prazer de viver, mesmo com dor?”

Chego até a pensar que posso não ter me esbofeteado numa sólida árvore, mas num delicado arbusto em que meus pés se enroscaram e, num desequilíbrio, caí. E os sonhos não vieram da trombada, mas de um encantamento súbito e crescente gerado pela manipulação de pequenos galhos enquanto eu dormia. Desacordada, fez de mim um fantoche ou um vudu, em que direcionou meus atos e sentimentos para algo nada genuíno e que acreditei ser autêntico.

Sendo o arbusto co-autor da minha queda e forjador do meu fascínio, decido seguir reto toda a vida. Jogo para o acostamento as mentiras, as mediocridades, as pequenezas, as baixezas, as traições e as lágrimas derramadas por uma farsa, por um personagem de um filme de mau gosto, por um filme mal dirigido. Continuo pela minha estrada de tijolos amarelos em busca da mágica da vida, dançando um tango sem aplausos em que posso ouvir o que possa ser dito em Buenos Aires e com a esperança de que o homem de lata ou a árvore majestosa ou o delicado arbusto tenha um coração de verdade.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Estranho de volta ao ninho


Após quatro anos da reedição de sua obra ficcional, Rawet encontra-se mais abundante nas prateleiras. Agora foi a vez de seus ensaios ganharem novamente os olhos do mundo. O volume Samuel Rawet: ensaios reunidos é continuação do projeto da editora Civilização Brasileira, que publicou, em 2004, Contos e novelas reunidos.

A nova coletânea abrange textos que Rawet escreveu e publicou entre as décadas de 1960 e 1980. Apesar de gêneros distintos, os temas são semelhantes aos perseguidos em seus contos e suas novelas, mas com um tom especulativo, filosófico. Os organizadores do novo volume, Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tônus, explicam, no prefácio, que ler os ensaios de Samuel Rawet é sempre um desafio.

“A cada linha e cada página o leitor é convocado a acompanhar a ruminação obstinada pela palavra adequada que não se deixa apropriar e que finalmente se desdobra em tantas outras, martelando o drama da incompreensão do homem diante da impossibilidade de dizer o mundo, de dizer-se a si mesmo e de se fazer compreender pela linguagem. Nessa busca sem limites, seu pensamento se dilui e torna-se errante, como se o próprio autor recusasse o estabelecimento em seus textos de uma ‘leitura-fechada, leitura-atenta ou leitura-rigorosa’”, preambulam Bines e Tonus.

Os ensaios rawetianos, assim como as obras em geral, proporcionam uma falta de ar, uma insônia que não permite o descanso, uns pontos de interrogação que bóiam em suas linhas e entrelinhas que permearam sua vida e permeiam a de quem se torna espectador e ator de suas obras. É concomitantemente uma leitura perigosa e atraente, atenta e inquieta, angustiante e fascinante. “Se a escrita de Rawet é desconcertante, intrigante, até enigmática, não é óbvia sua importância para a literatura brasileira”, assevera Saul Kirschbaum na tese de doutorado Ética e literatura na obra de Samuel Rawet.

Stefania Chiarelli esclarece a relevância de Rawet. “A obra rawetiana reúne características que situam o autor em um lugar especial na literatura brasileira: sua escolha pelo tema do imigrante, sua configuração como estranho e a ruptura que fez com uma determinada tradição do conto brasileiro fazem dele figura ímpar em nossa literatura. Assim, adquire a capacidade de tocar fundo em questões anteriormente apenas esboçadas no conjunto de nossas narrativas, uma vez que é pioneira a conquista do espaço enunciativo a partir da ótica descentrada do imigrante”, discorre Stefania na tese de doutorado Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum.

“O solitário caminhante do mundo” foi e ainda é um escritor desconhecido de muitos e conhecido mais particularmente de estudiosos. É como se a criatura seguisse o caminho de seu criador. Uma vez se disse que jamais houve no Brasil um poeta que viveu verdadeiramente como poeta como o foi Vinicius de Moraes. Daí é possível uma paródia: talvez não haja alguém além de Rawet que tenha não só escrito, mas vivido visceralmente o que se propriamente escreveu – a estrangeiridade, o estranhamento, o exílio, “o silêncio do estrangeiro”.

Ensaio

Em Consciência e valor, um dos ensaios presentes na coletânea, Rawet parte da burrice para tratar dessa dicotomia. Para isso, ele experimenta a idiotice e a ingenuidade diante do mundo e disserta que são a consciência e o valor os problemas da loucura e, ao mesmo tempo, da filosofia. E são essas as questões tratadas nas linhas deste ensaio. A partir da discussão, o autor alcança os sonhos como mecanismo de estudo para se chegar à consciência e finaliza com o relato de um devaneio pessoal para finalizar sua experiência.

Trecho:

“(...) Estava eu nessa etapa, vagabundo da consciência, embrenhado em algumas pesquisas ligadas à sexualidade. Deixo o aspecto fisiológico e hormonal para os sábios da matéria, deixo o aspecto psicológico para os eminentes monges dos divãs bem forrados, deixo o aspecto ético para quem de direito. Como é impossível efetuar essa pesquisa em laboratório, só havia um caminho: o mundo. E o mundo é a rua, a praça, o bairro, a cidade, a estrada, o bordel, o parque, o cinema, o hotel de luxo, a hospedaria de cubículos sem luz nem ar, onde mal se fica de pé, porque de um pavimento fizeram dois, o mundo é o ônibus, o saguão de um edifício, uma sala de visitas de madrugada, um mictório, um consultório, um gabinete bem atapetado. (...)”


O silêncio do estrangeiro

A literatura rawetiana é “uma literatura do ponto de vista do estranhamento geográfico, existencial, étnico, social e econômico. O estrangeiro, no seu sentido mais amplo, que não significa somente a mudança geográfica, mas toda a estranheza que um indivíduo causa aos outros, a estranheza dentro de si perante o mundo ao seu redor”.
Trecho da monografia de conclusão do curso de jornalismo em que se analisou seu livro de estréia Contos do imigrante.

Brasília, 29 de maio de 2008

Texto também publicado no site Biblioteca de Babel