quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Adeus, ano-velho!

Não gosto de despedidas, não por isso as evito. Por mais dolorosa que seja, gosto de dar o último abraço, o último olhar, a última palavra. Despeço-me de 2008 com alegria. Um ano em que, como nos outros, subi um degrau e me preparo para o próximo. As coisas boas deste ano? Ah, foram muitas. Mantive velhos amigos, cativei novas amizades; verti intermináveis lágrimas, abri inúmeros sorrisos; enfrentei medos e angústias; ouvi palavras duras, recebi outras tão doces; destruí ilusões e aprendi a enxergar a verdade; decidi aprender um novo idioma; descobri paixão por um novo esporte; tenho um novo amor e muitos sonhos a criar...

– Calma! Não se despeça assim. Ainda é dia!, diz o ano de barba branca e olhinhos cheios de pregas.

– Preciso me despedir logo, ano velho. O dia passará rápido e não terei tempo de dizer-lhe algo à meia-noite.

– Como assim? Todos têm tempo de agradecer pelo ano que se passou e fazer desejos para o que se aproxima, reluta o senhor 2008.

– Mas é que eu não estarei numa festa, numa praia, nem sequer na minha casa. Infelizmente estarei numa redação para contar como foi a virada do ano na capital do Brasil.

– Poxa... Desejo então que ao se despedir de mim trabalhando, 2009 lhe traga dinheiro, prosperidade, viagens, praias...

Uma brincadeirinha para ver com bom-humor os percalços do jornalismo.

Feliz ano-novo a todos e que muitos sonhos sejam criados e bastantes desejos realizados em 2009!

Grande abraço e beijo carinhoso! Até o próximo ano!

domingo, 14 de dezembro de 2008

Brasília

O mais belo pôr-do-sol
Encanta quem dela gosta e desgosta
Sem esquina, gente na rua ou farol
Quadrado onde mora a esperança
Do país que o futuro não alcança
Progresso tem quem entra na dança
Ordem só na bandeira dependurada
É a ilha da fantasia da pátria amada

Ela, ela e ela também saíram do óbvio e não usaram as palavras planejada - céu – monumento – poder – avião - planalto central - coração do Brasil - de todos os cantos

sábado, 13 de dezembro de 2008

Saudade

Vejo-te em sonhos que se repetem
Alimento-me do que não me sacia
Devaneios que os quilômetros não medem
Tormento que não alivia
É acreditar que um dia você viria
Para encher meu espírito de alegria
Saudade, minha companheira de todo dia

Ela, ela e ela também saíram do óbvio e não usaram as palavras distância - português – falta – sentimento – encontro - partir - voltar

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Música

Lenine faz-me acreditar que é possível
Moska apazigua um coração atormentado
Caymmi me faz ver o mar no cerrado
Cartola é a dor na poesia mais sensível
Chico é o sublime eternizado
Eu sem música seria impossível

Ela, ela e ela também saíram do óbvio e não usaram as palavras som – ritmo – vibração – dança – instrumento – nota musical

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Fugir

Meus pés têm pressa
Para evitar que eu veja ou sinta
Novamente o que me dói e corrói
Mas a vida é mais depressa
É a vida contra meus pés

Ela, ela e ela também saíram do óbvio e não usaram as palavras fugir – correr – horizonte – novo - velho

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Vida e trabalho

A vida é trabalho
Resta algum tempo?
Não se sabe dizer
Não existe outra vida
Não há conversa
E quiçá
Um dia dirá
– Eu devia ter trabalhado menos
– Vivido mais
Porque a vida não é só trabalho
É o que se faz além e ao mesmo tempo

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Laboratório dos ceús

Penso se aqui na Terra não seria um laboratório dos céus. Nós seríamos os ratinhos brancos manipulados por cientistas-deuses malucos. Já pararam para perceber aqueles seres andando em cima de esteiras numa academia? Não são semelhantes aos roedores que vemos dentro de gaiolas correndo desnorteados numa roda? Quer prova maior que isso?

Já fui uma ratinha, branquinha eu continuo, dessas de laboratório que andam em esteira. Talvez eu tenha evoluído porque não suporto mais aquele chão que anda sem que nós mesmos o iniciemos ou paremos. Minha promoção não foi lá essas coisas, talvez tenha me transformado num anfíbio de laboratório porque descobri paixão pela água. Prefiro as piscinas com águas que se movem naturalmente.

Outra coisa que me faz associar os bípedes, nós, aos animais de experiências são as coisas que dizemos e/ou pensamos. Freqüentemente, para não dizer sempre, me ocorre algo que desgosto, então falo ou penso e... Abracadabra! Como num passe de mágica, pago literalmente a língua e vivo exatamente aquilo que disse ou pensei levianamente. É como se existisse o deus-gênio-da-lâmpada, mas sem que nós saibamos que era um desejo, era apenas um desabafo pessoal.

O que me inquieta, no entanto, é que o que mais de sério digo, penso, sonho, desejo, imploro, não ocorre. Será que é por que de tamanho peso, o intervalo entre o pensável e o realizável é maior? Que isso requer trabalho não só de cientistas-deuses malucos e deus-gênio-da-lâmpada? Ainda preciso descobrir como isso tudo funciona.

São muitas provas que existem. É só parar para observar. E são tantas que enlouqueceria em transcrever. Não que eu esteja louca, ao contrário, buscar razões ou explicações são o que me faz lúcida. Já desconfiava o porquê de psicólogos não me atenderem por muito tempo. Antes que eles perguntassem, eu soltava um “acho que isso é porque...”.

Há um deus que vejo muitos sonharem em um grau maior que outros. Ele já inspirou diversos filmes, mas evito ter devaneios. É o deus-máquina-do-tempo. Imagine se pudéssemos voltar no tempo e mudar nossas escolhas? Parece simplesmente uma maravilha, mas imensamente perigoso. E se nossas segundas decisões fossem ainda piores que as pioneiras? Mmmmmmm... Difícil saber se não existir o deus-bola-de-cristal.

E uma coisa da televisão me fez pensar. Je n’aime pas beaucoup regarder la télévision, mas há coisas nela para as quais reservo meu tempo. Ontem, num programa, uma personagem disse que era da forma que era porque, bebezinha, lhe punham um babador com os dizeres: “as boas vão pro céu, as más vão para qualquer lugar”. Ela não é lá dessas pessoas muitas boas. Então lembrei-me de uma foto minha bem pequena em que eu estava engatinhando com os dizeres na fralda: “Sô da titia”.

Ui! Será que até assim pagamos a língua pela roupa que usamos involuntariamente quando ainda somos pequenos fantoches? Ok... Já me imaginava mesmo ficando pra titia anos atrás. Então, se um relacionamento termina, penso logo numa estante cheia de livros que serão lidos enquanto casais se acasalam e procriam, em vários tickets de cinema que se acumulam na carteira para só depois de deformadas serem jogados fora. Mas ainda assim a idéia de solteirice-coroa não me apetece.

E, pensando nesses deuses, ratos de laboratório, roupas infantis, pagamentos de língua, dirijo meu carrinho de laboratório, ligo o rádio e... “Esse papo já tá qualquer coisa, Você já tá pra lá de Marraqueche”. Será que existe o deus-caetano? Será que esses deuses podiam ser mais claros?

Se assim ocorrer, está aqui a prova:

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Síndrome do saco-cheio

Imagino dentro de mim um saco. Desde quando? Desde sempre. Pode ser um saco de um plástico bem fino ou de um material espesso, pode ser pequenino como um saquinho onde ficam os talheres de restaurantes ou grande como aqueles sacos de lixo, pode ser elástico ou não suportar o menor aumento de peso. Esse é um saco que carrego dentro de mim e que a cada momento possui características próprias.

Especialmente neste momento, que dura umas três semanas, o saco parece romper inicialmente ao barulho de um aparelhinho que deixo ao lado da cama e que me desperta para mais um dia como todos os dias. Durante o dia, ele esvazia como na respiração que se faz debaixo d’água nas aulas de natação e incha como aqueles balões que as crianças enchem até estourar.

São as minhas formas que se arredondam e transformam-me numa grande almofada de 1m68 (ou 1m67 como eu descobri há duas semanas); é a previsibilidade do dia-a-dia acompanhada de sua rotina inseparável; é o trabalho mecânico realizado por sete horas em frente ao computador; são privilégios a poucos e deveres a muitos; é um sonho que estava ao lado e se distanciou 209 km; é uma viagem que se planeja, mas que não se adapta ao período disponível. Não se engane, essa não é a famosa TPM.

Sou alucinada em descobrir a cura para o saco-cheio. Encontrei subterfúgios para evitar que o saco se alimentasse, mas descuidei um segundo e as armadilhas não mais funcionam. É o famoso tempo que me faz recolocar uma válvula para impedir o efeito sanfona. Mas, às vezes, os remedinhos, falsificados ou genéricos ou vencidos, teimam em não colaborar.

Indisposição para qualquer coisa é seu sintoma mais grave e o principal indicador de ser portador da síndrome. No entanto, não se assuste, ela é temporária. E não se aperreie, pois ela pode durar algumas horas ou vários dias. A abstração é a grande fórmula para combater o saco-cheio, mas, a depender da quantidade de ingredientes que entram no saco, ela se torna incapaz de algum resultado.

Então, é esperar, esperar, esperar, e até o esperar enche o saco, mas persevere, espere, espere, espere e, de repente, não mais que de repente, o saco volta ao seu equilíbrio. Mas fique atento para prolongar o maravilhoso estágio de não estar com o saco cheio e sonhar com o dia que ele jamais se encha novamente.

Ana Rita adverte: saco-cheio faz mal à saúde. Se os sintomas persistirem, tenha paciência!

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

C’est la vie

Uma imagem persiste no filme da minha mente desde a infância. Era um dia da semana, por volta das 19h, depois de sair da Escola Santo Antônio. Sentada no Tacho para comer algo que somente quando se é pequena não se engorda, paro, por um instante, para observar uma mulher que passava. Vestida com camisa, saia na altura do joelho, meia-calça e scarpins, logo após sair do expediente, ela fez-me imaginar como eu seria daqui anos.

Perguntei a mim mesma se seria bela, independente, segura, tranqüila, realizada, como ela projetava. Respondia afirmativamente, pois, em minha vã, curta e pequena filosofia pueril, achava que todo adulto se tornava assim. Por anos, não me preocupei com os anos que se passavam. “Serei adulta. Tudo virá, tudo se arrumará”, eu devia pensar.

Viajei e viajo até hoje a partir daquela imagem. Se, por momentos, me tranqüilizo, é porque acredito que a maturidade ainda virá. Se, por momentos, me agonizo, é porque concluo que a maturidade já chegou e não me vejo como aquela mulher ou porque, se ela ainda não chegou, parece tão distante que eu me transforme no que sonhei.

Costumo dizer que tenho inveja de quem, na infância, afirmava com a maior certeza: “eu quero ser tal coisa quando eu crescer”. Recordo-me somente de um dia, sentada próxima ao portão do colégio esperando meus pais me buscarem, quando fui questionada por um pai de algum coleguinha: “O que você quer ser quando crescer?”. E eu respondi: “Serei juíza”. Cresci e me tornei jornalista.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Breves despedidas

Ver alguém se voltar para se despedir é algo que me encanta. O simples gesto em si. Não espero que, ao seguir seu caminho, com tanto pela frente, simplesmente gire o rosto para acenar e mandar um beijo. E, então, quando me deparo com os olhos a olhar novamente os meus, o sorriso é instantâneo. E, mesmo após os dois seguirem seus caminhos, o sorriso persiste. Um sorriso com o qual não vejo nada à frente a não ser a lembrança doce do corpo que se volta para me olhar e me beijar mais uma vez. Encontrar e desencontrar permitem o prazer ímpar tão fugaz e ao mesmo tempo tão memorável.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

[7] Preguiça

Pingos de chuva tilintam na janela
Um bom filme passa na tela
Braços em abraço
Nem um só passo

* Ela, ela e ela também pecam

sábado, 15 de novembro de 2008

[5] Luxúria

Quero-te a todo instante
Na cama ou na estante
De desejo torno-me viva
E deixo de ser cativa

* Ela, ela e ela também pecam

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

[4] Orgulho

Envaideço-me do pouco que faço
Regozijo-me do pequeno passo
Facilmente me desfaço

* Ela, ela e ela também pecam

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

[2] Ira

Brado aos quatro cantos
O silêncio a que me impus
Do ódio que se apossou
E para sempre me calou

* Ela, ela e ela também pecam

terça-feira, 11 de novembro de 2008

[1] Gula

Como pelo imenso vazio
Para preencher o insaciável
Como um terreno baldio
Jamais habitável

* Ela, ela e ela também pecam

Livro quieto, leitora inquieta

O livro no mesmo lugar. Pernas que não sabem onde levar. Corpo que antes se aquietava em concentração, agora se agita sem saber qual norte seguir. O dia era curto. Agora, suas lentas horas são combatidas numa corrida ao alcance de respostas. Aproximação de fim de ano, surgimento de uma distância, insatisfação incontralada, desejo de mudança generalizada. Descuido que permitiu o retorno da ansiedade inerente. Novo cuidado que descuidou do anterior.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Diálogo demasiado

– Por onde anda que não sabemos mais de você?, perguntaram-lhe.
– Estou ocupado demais sendo feliz!, respondeu alegremente.

Dias depois...
– Estou ocupada demais sentindo saudades..., pensa ela agora.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Cartola: música e poesia para a vida

Perdi de ver Cartola – Música para os olhos, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, no cinema. Posterguei o filme até que encontrasse o dia perfeito, mas esqueci-me de que as películas brasileiras permanecem em circuito muitíssimo menos tempo. Procurei DVD, mas tampouco o encontrava. Um dia, finalmente, vejo a capa com sua foto preto e branca, de perfil e cabeça baixa.

Não perguntei o preço. Alguns motivos me impediram de vê-lo logo em seguida. Mas, em um domingo em que o Brasil parou para assistir a Felipe Massa correr em Interlagos ou para homenagear pessoas queridas no Dia de Finados, eu parei para conhecer mais do maior nome do samba. Um amor antigo que desconheço quando exatamente começou.

Angenor de Oliveira, conhecido como Cartola, é um dos artistas que ocupam o topo da minha pirâmide alimentar; é minha fonte de energia, alegria, admiração, respeito, veneração. Ouvir Cartola me transporta a outro mundo, é fechar os ouvidos para os ruídos de fora. É acreditar que se é grande sem ter (fisicamente, materialmente) nada. É a voz que dá um recado, é a melodia que abre um sorriso, é a letra que faz pensar, é a música da dor e do sonho.

É uma pena que o filme não signifique tanto ou que não revele com mais precisão a grandeza desse poeta que fundou a Estação Primeira da Mangueira. Mas vê-lo com Zica, com seu pai, com seu violão, com seus óculos grandes a esconder os olhos de um rosto delgado, são imagens preciosas para quem somente conhecia suas feições por fotos.

Falar de Cartola é não saber falar dele; é recomendar que se conheça, que se ouça, apenas. Aquele que não gosta, eu prefiro não saber.

“Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem amor
Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

(O mundo é um moinho, Cartola)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Que belo estranho dia pra se ter alegria

Semanas atrás, voltei à minha curiosidade com a música brasileira. Dessa vez, conheci um pouco da potiguar Roberta Sá. Tive a oportunidade de vê-la, no ano passado, em uma participação em show em homenagem a Gonzaguinha, mas ainda não conhecia sua história ou seu trabalho.

Em um dia que não me apetecia a introspecção de ler um livro, baixo seu último disco – Que belo estranho dia pra se ter alegria (sim, baixei o disco. Meu modesto salário não comporta que cada conhecimento origine um novo cd, apesar de adorar a idéia). Coloco o cd no carro e ele perdura lá por vários dias.

Encantada, busco também seu primeiro disco, leio sua biografia, faço propaganda a amigos. Poucos sabem me dizer sobre ela ou têm opinião sobre a artista. Descobri a delícia de “descobrir” algo sem alguém ter feito referências ou elogios e eu mesma tecer minha própria idéia sem induzimento de outra.

Considero a cantora no rol de pessoas que me colocam pra baixo, no bom sentido. Com apenas 27 anos, ela tem dois belos discos com participações de grandes como Lenine e Ney Matogrosso. Com repertório de boníssimo gosto, entre suas músicas estão composições de Lula Queiroga, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Pedro Luís.

Uma linda voz, um ritmo gostoso, belas interpretações. A isso se somam sua beleza e simpatia percebidas (ressalte-se, pois posso estar enganada) em apenas uma música no palco do Centro de Convenções de Brasília com Daniel Gonzaga. Sua jovialidade encanta e faz pensar o que virá de tanto melhor ainda pela frente.

Espero que a impressão de discos iniciais se confirme após mais trabalhos e que o Brasil tenha mais uma artista de valor crescente. E que ela venha a Brasília para me presentear ao vivo com o que conheço de gravação em estúdio.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

209 km

Telefone toca
Voz grave
Fala relutante
Parte boa
Parte ruim
O que você acha?
Duas verdades
Dois caminhos
Vida e suas bifurcações
Vida e suas distâncias

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Homem comum

Após haver lido metade de Homem comum, de Philip Roth, dias atrás, numa noite decido retomá-lo. Viajo em suas histórias e me assusto com o passar das horas. Interrompo o deleite como quem toma o brinquedo de uma criança. Já era tarde da noite e o cansaço do dia anterior com o início do horário de verão me fez preferir o descanso às palavras.

Na noite seguinte, recupero as páginas. Uma ansiedade feliz fez-me deitar para lê-lo com o maior dos prazeres. Roth é assim. Você lê na cama sem sentir sono, lê com os chinelos barulhentos da mãe pelo corredor sem perder a concentração, lê tranqüilamente com o som distante das desgraças transmitidas pelo Jornal Nacional que o pai assiste na sala.

Ao faltar umas sete páginas para terminá-lo, fecho a porta. Queria que nada interrompesse ou postergasse o prazer ímpar de descobrir o fim da história. Impacientava-me com o que faria com seus medos e remorsos ou o que eles fariam com ele próprio. Encantei-me de certa forma com o canalha que, idoso, sofre com seus arrependimentos e com o homem que se tornou.

Seu sexo descarado, seu egoísmo assumido, seus arrependimentos doídos, seu amor perdido, são contados de forma simples. A densidade está na história em si e não na costura de suas palavras. No início, uma leitora tem certo pavor de suas atitudes, mas, do meio pro fim, compadece-se de sua dor.

A penúltima linha causa aquele ardorzinho no nariz, como que chamando lágrimas aos olhos. Não queria que assim terminasse ou que, se assim fosse, tivesse mais coisas para me contar. E foi assim que Roth quase me devolveu à livraria para comprar mais um livro seu. Voltei lá, mas não saí com Roth na sacola. Decido comprar outro autor para que a paixão não se enleve e eu possa incluir outros canalhas em minhas prateleiras.

“E ele, pelo resto da eternidade, nunca mais receber os telefonemas matinais dela! Viu a si próprio correndo em todas as direções ao mesmo tempo pela principal interseção de Elizabeth – o pai fracassado, o irmão invejoso, o marido infiel, o filho impotente – e, a poucos quarteirões da joalheria da família, chamando os familiares que jamais poderia alcançar, por mais que corresse atrás deles. ‘Mamãe, papai, Howie, Phoebe, Nancy, Randy, Lonny – se naquele tempo eu soubesse como agir! Vocês não me escutam? Estou indo embora! Terminou, e estou deixando vocês para trás!’ E todos se afastando dele, tão depressa quanto ele deles, viravam as cabeças para trás para exclamar, por sua vez, com vozes carregadas de significado: ‘Tarde demais!’

Partir – a palavra que o fizera despertar sufocado, em pânico, vivo após abraçar um cadáver.”
(Essas não são as últimas linhas de Homem comum)

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Nomes e suas heranças

Mas nome é só um nome. Recordamo-nos das pessoas, às vezes, mais pela alegria contagiante, pela figura taciturna sentada ao lado, por uma gargalhada, por bons e maus momentos vividos juntos, por uma expressão maldita ou bendita, por uma viagem, por confidências trocadas, por um abraço na hora certa, por uma foto amarelada. Não sei porque me ligo em um nome...

Mas percebo que dou importância às pequenas coisas. Muitas pessoas têm o costume de imaginar nome dos filhos antes de pensar em tê-los. Mas eu não tenho lista dos nomes pretendidos, tenho a lista dos nomes “incolocáveis”.

O costume que eu tenho, então, é o de que um nome transmite, o que ele me lembra. Se dor, sofrimento, traição, desgosto, mentira, esperteza pequena e barata, desses indignos um filho meu jamais herdaria a carga negativa em um nome. Não poderia chamá-lo de uma forma que traria à memória coisas ruins, lembranças dolorosas, pessoas desgostosas.

Mas, como sempre disse, não penso em ter filhos. Em alguns, encontro salvação. Neste caso, em Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Ou, quem sabe, o dia que eu tiver extirpado a miséria de meus olhos, eu venha a pensar em nomes pretendidos...


Vó Rita e Ana Rita

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ana Rita

Que agradável surpresa a que encontrei nesta segunda-feira! Sempre brinquei de padecer de nunca meu nome haver sido cantado, escrito, declamado, declarado, em músicas ou livros. Encontrava-os separados, jamais unidos.

Hoje, ao receber o link de uma interessantíssima revista eletrônica, deparo-me com o conto Ana Rita, do poeta angolano João Tala.

Uma apreensão me fez guardá-lo para ler sozinha a história. Senti um alívio por gostar da escrita, apesar de não apreciar o desenvolver dos acontecimentos e o fim nada conto-de-fadas ou, no mínimo, esperançoso. Ainda bem que somos Ana Rita apenas no nome, no apelido, na paixão e no sorriso.

Pelo menos agora posso dizer: “Existe, sim, uma história com meu nome”. E que, ao contrário da Ana Rita contada, minhas opções não sejam sempre agravadas por azar e, sim, que meus olhos continuem sorridentes como os dela e que, desculpe João Tala, jamais seja tarde para recomeçar.

Fragmentos de Ana Rita

“– Ana Rita, quanto tempo já nos comeram – disse-lhe ansioso de ouvir de novo o timbre agudo da sua garganta; tinha voz receosa, talvez cautelosa. E sofrimento.
Respondeu-me finalmente, agora fazendo sobressaltar a voz.
– Tem muitos anos, nos conhecemos. Aonde estavas durante essa vida em que nos puseram fogo? – disse, a sua linguagem é o retrato da guerra.
...
Então. Restou aqui fora aquele sorriso que nem velhice consegue riscar, num rosto que perambulava aí, no susto das épocas que degradaram nossos semblantes – como se vê, pessoas ainda assustadas, esquinadas na espera de qualquer coisa que vem aí, ninguém sabe o quê, mas qualquer raiva de novo a deflagrar de nós próprios. Aliás, sempre fomos assim, não tem conversa.
...
Contaram-me tudo o que aconteceu com esse amor desaparecido, a Ana Rita.
...
– Eu me desgastei. Onde tu estavas enquanto eu aqui me desgastava de todas as dores?
– Ana Rita, ouça-me: nunca um homem pode ser tanto. Ninguém desgasta à toa mulher que seja.
– Nunca mais vou sentir a dor de uma voz. – Ironizou, era uma crítica à minha ausentada vida enquanto ela procurava...
– Eu procurei o teu nome... vai estar sempre perdido como ninguém. – Finalizou desesperançada. Afinal nem conhecia meu nome...”

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Mallu tchubadubando

Como boa entediada do dia-a-dia, costumo levar a Bravo! para o trabalho quando, além do marasmo, o mundo decide parar por uns instantes. Decidi não ler a revista em ordem, pulei logo para ler a matéria sobre uma molequinha que faz sucesso em plenos 16 anos. Estava curiosa com o que ela tinha a oferecer musicalmente ao mundo em fase tão pueril, pelo menos assim me sentia em sua idade.

Suspeitei que pudesse ser boa coisa devido às dez páginas que lhe foi dedicada. Uma vida interessante, em que subiu degraus de forma bem rápida se comparada a outros músicos, como, por exemplo, o meu admirado e querido Lenine. Depoimentos de gente grande fizeram minhas suspeitas penderem cada vez mais para o lado positivo.

Talvez não satisfeita e talvez incrédula, entro no site da revista e encontro um espaço reservado a ela, com clipes, áudios e fotografias. Sua voz me chama a atenção pela certa maturidade, pelo bom tom, pela suavidade. Em Noil (lion ao contrário), a sua mais cotada música do cd segundo dizem, percebe-se talvez uma dor expressa numa voz forte contrastada com sua doçura.

“... Mallu sempre se considerou um ponto fora da curva. O patinho feio da turma, com opiniões e gostos difíceis de compartilhar”, diz a matéria. No clipe de J1, ela canta “I’m weird, i’m sou strange”. Mallu Magalhães: uma estrangeirinha em ascensão, que encanta os nativos e que provavelmente surpreenderá muito a muitos, como a mim.

Surpreenda-se! Ou não...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Efeitos colaterais da literatura

Em uma mesa de bar, ouvi que se adoraria ler Dostoiévski, mas que foi aconselhada a não fazê-lo. Não era um papo cabeça regado a copos de cerveja. Era um papo entremeado de inúmeras risadas e intimidades que se começa a falar entre amigos e após certo grau etílico. A interrupção ocorreu quando Faraó, o famoso vendedor independente de livros em bares de Brasília, chegou com a sua pilha de obras.

Antes do escritor russo, a primeira interrupção foi a conclusão de alguns: “Ele (Faraó) sempre traz Nietzsche em cima”. Ri porque não havia atentado para o fato mesmo vendo a coleção de livros toda as vezes que sento em um bar. Não foram e não são raras as oportunidades que o bolinho chega ao lado.

Voltando a Dostoiévski, com toda a indiscrição e todo o susto, perguntei-lhe por que a haviam dito para não lê-lo. “Ele me disse que dá depressão”, confessou. Não me contive, ri e recomendei-lhe justamente o contrário. Para encorpar minha pífia opinião, disse que procurasse qualquer lista das melhores obras já escritas em todo o mundo. Certamente, Crime e castigo está em todas.

Crime e castigo foi o segundo livro que li “obrigada” e que me apaixonei. Depois dele, li Memórias do subsolo, Noites brancas; e O idiota aguarda pacientemente a sua vez. Como alguém pudera dizer que Dostoiévski deprime seus leitores? Deduzi que há deprimidos demais no mundo. No entanto, também inferi algo perigoso sobre os homens. Associei os seres do sexo masculino aos governos de países atrasados como o Brasil. E a conclusão a que cheguei é a de que homens/governantes apreciam mulheres/eleitores dóceis, sem muitas perguntas, sem muita leitura, não somente para não questioná-los, mas para também não haver riscos, competição, no caso dos homens.

O perigo, acredito, que possa advir com demasiada leitura é o ceticismo. Leitores contumazes tendem a não acreditar em nada e, portanto, a duvidar de tudo. Essa foi outra dedução que acompanhada de uma amiga tivemos nos intervalos que fazemos durante o expediente. Mas esta inferência foi particularmente relativa a Nietzsche. Então, cuidado, leitores, vocês podem se tornar seres irreversivelmente incrédulos e, segundo outra opinião, seres deprimidos irrevogáveis.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sentir falta…

Sinto falta de Borges após ler Roth. Assim como senti falta de Machado ao ler o escritor argentino. Sinto falta das visitas ao dicionário, da exigência de concentração, da criatividade fantástica.
Sentia falta de ter alguém para dividir o dia-a-dia. Sentia falta de companhia nas tardes e madrugadas dos finais de semana, sentia falta de ter alguém para ligar, sentia falta de ter alguém para sentir falta. Agora sinto falta do que tinha antes de ter alguém. Sinto falta do tempo largo para sentir falta. Minha vida é um eterno sentir falta e acostumar-me, sentir falta e acostumar-me, sentir falta e acostumar-me…

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Rimas contínuas

Passam os anos
Mudam os planos
Novas viagens
Velhas tatuagens
Outros personagens
Some um rosto
Com ele o desgosto
Novo horizonte
Felicidade, uma ponte

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Salve, dia da independência!

Há um mês decidi dar uma chance aos acasos da vida, como de costume. Como um relâmpago que rasga um céu azul ensolarado surge uma nova pessoa. Um susto como que semelhante aos ocasionados pelos fenômenos temporais que, após o medo, trazem a chuva branda, que acaricia e alimenta sentimentos enterrados. "Oi, tudo bom?", fotos com amigos e uns passos de samba no meio da madrugada transformaram-se, três semanas depois, em uma nova história. Uma peça sobre Mario Quintana e uma festa anos 80 foram o prenúncio desencontrado de um novo enredo que aniversaria hoje. Eu fui à peça. Ele foi à festa. Num sete de setembro, fomos juntos ao show de Moraes Moreira. Num sete de outubro, fazemos planos. Parabéns, minha nova história! Salve, dia da independência!

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Quebra de rotina

Bom dia, meus olhos pequeninos. Carro. Posto. Calibrar pneus. Buscar amigos. Carro cheio. Estrada. Parada em pequena cidade. Cerveja, suco. Mais asfalto. 120 km/h. Risadas. Bem-vindos a Pirenópolis. Malas. Pousada. Andar a pé. Almoço. Muito almoço. Tarde na piscina. Cerveja. Banho. Pizza. Noite. Noite mal dormida. "Estou sem sono". Calor. Ventilador. Amor. Sol invade a janela. Amor. Pão, queijo e presunto. Carro. Cachoeira. Água gelada. Fotos. Muitas fotos. Calor. Fome. Almoço. Banho. Carro. Brinde. Estrada. Parada. Corumbá. Estrada. Música. 60 km/h. Abraços. Malas. Lanche. Beijos. Carro e motorista. Casa. Calor. Banho. Ventilador. Cama de solteiro. Bom dia. Carro. 60 km/h. Trabalho…

P.S.: Quando os amantes dormem

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Carta confessa

Caro anônimo,

Não me faças crer que o mundo é meu. São tantas as sequóias que um ponto de um raio de luz não se percebe cá embaixo. Olho para o alto e vejo tanta altura, tanta robustez. Aqui, entre gamíneas, sinto-me igual, crescendo junto, e, mesmo entre elas, há os capins que crescem instintivamente, ininterruptamente.

Não me conheces, não sabes quem sou. Não entendes meus medos ou minhas angústias. Sei que devo enfrentar e adubar-me, mas isso requer tempo. Preciso encher a mala que carrego. Preciso senti-la pesada para ao menos encorajar-me de cutucar a árvore ao lado.

Não sei para onde ir. Minhas raízes são tão presas ao solo que parecem uma precaução, um aviso, um cuidado da terra para não deixar-me ir. É como se o chão soubesse quem deve subir aos céus ou não. E, então, sinto que ele me quer perto, para não querer ir mais alto do que alcanço.

Sei também que devo seguir meus próprios instintos. No entanto, sua linguagem me é ininteligível. Numa hora, dizem: coragem. Noutra: cuidado. Tenho os joelhos ralados de teimar ir mais rápido do que devo ou andar por onde me atrevo. Mas certamente um dia reconhecer-me-ei entre sequóias e gramíneas porque, como cantou Cazuza, eu (também) mereço um lugar ao sol.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Farpas inflamáveis

Falta de confiança. Acredito que nunca me demorei muito em pensar sobre isso. Talvez achasse que bastasse acreditar em mim mesma e não me importaria com o resto, que não acredita. Mas não, ela incomoda. Parece aquela minúscula farpa na bochechinha de um dos dedos. É uma coisa pequena, que chateia, e que, se não cuidada, inflama.
És farpa ou infecção?

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ô, Rita, tu sai da janela*

– Rita, por que não sugere essa matéria?
– Tenho medo.
– Medo de quê?
– Tenho medo de ser um fracasso.

“O medo é como um laço que se aperta em nós
O medo é uma força que não me deixa andar...
Tienen miedo de encontrarse y miedo de no ser
Tienen miedo de decir y miedo de escuchar…
Tenho medo de parar e medo de avançar...
Medo de pedir arrego, medo de vagar sem rumo...
Medo de se arrepender
Medo de deixar por fazer
Medo de se amargurar pelo que não se fez
Medo de perder a vez” **


* Parte da música Lavadeira do rio (Lenine, Bráulio Tavares)
** Trecho da música Miedo (Lenine, Pedro Guerra, Robney Assis)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Por que ler?

Leio pra crescer
Leio pra acordar
Leio pra não enlouquecer
Leio pro tédio não invadir
Leio pra esquecer
Leio pra me lembrar
Leio pra viajar
Leio pra sumir
Leio pra suportar
Leio pra entender
Leio pra confundir
Leio pra me descobrir
Leio pra me encontrar
Leio pra me perder

Assim, viciei-me em ler...

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Agora, sim, Borges.

Preservei uma impressão, adquiri opinião distinta, e hoje construí a minha própria idéia. Jorge Luis Borges é um gênio. Em tempos de faculdade, dizia-se que ele era isso e aquilo, mas ainda não tinha me apaixonado por literatura ou sentido sua necessidade. Anos mais à frente, li uma matéria e... Que decepção! Como alguém tão sublime podia ser racista e a favor de militares no governo?

Então parti Borges ao meio até a literatura virar um vício e ele ocupar um lugar na fileira de livros que me impus. Com a mania assumida publicamente, ganho O Aleph de presente de aniversário de meus 27 anos. Ao terminar outras leituras, mergulho em seus contos. Sim, demorei propositalmente em suas histórias. Dificilmente me concentrava em seus dois primeiros parágrafos, lia e relia, mas, rapidamente, me encantei por suas palavras.

O Aleph foi o típico livro que adiei o fim. Não queria terminá-lo nunca, apesar da lista de obras crescer incessantemente. Admirava-me a sua criatividade, a sua delicadeza, suas referências, as surpresas, o fantástico dos enredos. Certamente sonhei entrevistando-o a fim de descobrir de onde tantas idéias brotavam, mas infelizmente não me recordo de minhas atividades jornalísticas oníricas.

Ao fim de cada conto, precisava desligar-me. Só lia outro no dia seguinte, pois precisava viver e digerir tamanha genialidade. O Aleph também é um dos meus livros que não empresto. É expor-me demasiadamente a quem o abrir. Grifos, círculos, anotações de dicionário. Outra mania que adquiri junto ao próprio vício pela literatura. Costumo imaginar sendo enterrada junto a eles como se ali estivessem meus segredos, meus mistérios, meus medos, meus sonhos.

Todos os contos são um mergulho, mas uns são ainda mais profundos. Chamaram-me a atenção especialmente O imortal, Os teólogos, História do guerreiro e da cativa, Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, Deutsches requiem, A busca de averróis, O zahir, A escrita do deus, e, obviamente, O Aleph.

Borges é definitivamente fantástico, em suas duas acepções. No entanto, há ainda outros tantos autores a descobrir... Philip Roth, Milton Hatoum, Inês Pedrosa, Leon Tolstoi, Virginia Woolf... E outros tantos a redescobrir... Samuel Rawet, Italo Calvino, Fiodor Dostoievski, Julio Cortazar, Franz Kafka, Machado de Assis, Guimarães Rosa... E, é claro, Jorge Luis Borges.

“Na rua, nas escadas da Constitución, no metrô, todos os rostos me pareceram familiares. Temi que não restasse uma só coisa capaz de me surpreender, temi que nunca mais me abandonasse a impressão de voltar. Felizmente, ao cabo de algumas noites de insônia, de novo agiu sobre mim o esquecimento”.
(O Aleph, pg. 151)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

À espera de gotas

Lendo A espera de Borges vi O esmagamento das gotas de Cortázar. Senti o vento no rosto que não sentia há muito no cerrado brasiliense. A vontade de sentir o cheiro de terra molhada me fez antever riscos diagonais na janela do quarto. Prenúncios de chuva aumentavam a ansiedade em ouvir o barulho que carros fazem ao passarem por um volume maior d’água junto ao meio fio.

Correr da chuva por não estar precavido ou banhar-se voluntariamente com as águas do céu. Meus sonhos entremeavam-se aos sonhos de Villari. O que nele eram fantasias aos meus combinava. Ao fim, o recluso depara-se com a realidade, mas deseja que seja sonho. Eu não quererei o sonho, quero o real transbordado em gotas. Não quero lhes dar adeus, quero lhes dizer: sejam bem-vindas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Estranhos me confortam

Cada vez mais penso nisto: estranhos me confortam. Talvez porque eu seja estranha... Ou porque todos nós sejamos estranhos ou tenhamos nossas “estranhices”. Hoje foi a vez de José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão.

O confessionário deste mês da revista Bravo! sobre ele diz, entre outras coisas:
“Cientistas vivem alardeando que cigarro prejudica a saúde. Mas por que não se rebelam igualmente contra os poderes nocivos da Coca-Cola? Mojica mantém distância segura da bebida. Crê, com a devoção dos talibãs, que Coca-Cola em excesso tira o vigor sexual masculino e deixa as mulheres inférteis. Perto do refrigerante, nicotina é um néctar”.

É isso aí, Zé do Caixão. Deixem-nos em paz! Bebam coca-cola como se fosse água, empanturrem-se de chocolates, bebam xícaras e xícaras de café ao dia, bebam álcool quanto quiserem, comam gordura à vontade. Não me perturbem nos meus minutos acompanhados de meu cigarro. Cada um com seus vícios, suas manias, suas compulsões, seus pecados capitais, suas válvulas de escape. E viva meus treze anos sem um gole de refrigerante!

domingo, 14 de setembro de 2008

Ensaio sobre a cegueira

Ensaio sobre a cegueira é um bom filme, assim como o alívio que se sente ao sair da sala do cinema. Poder enxergar e ver que está tudo em “ordem” proporcionam uma sensação anteriormente desconhecida. É como se por algumas horas tivéssemos sentido o que é ver um clarão onde antes havia verde, azul, amarelo. É confortante ver carros estacionados em suas vagas e corredores limpos, sem mau cheiro.

Entristece-se, além das condições em que são obrigados a viver, com o tiranismo surgido em terríveis circunstâncias. Usurpa-se um poder não-legítimo em prol de uma satisfação inexistente. É a baixeza e a amoralidade do ser humano em seu grau mais baixo. Cheguei a me regozijar por o mundo não ser como aquele da tela, mas engano meu. O caos é tanto quanto, apenas as peças estão trocadas.

Enquanto o “normal” no mundo é enxergar, ali ele era o “anormal”. Mas, no plano real, há outras deficiências, outras cegueiras, outras ignorâncias, que nos fazem colocar uma venda para propositalmente não vermos e, assim, fingirmos que certas coisas não existem. Um poder não-legítimo é usurpado todos os dias em vários cantos do mundo.

A diferença é que não sentiremos o prazer de voltarmos a enxergar assim como o personagem alegra-se em voltar a ver formas e cores. Seu júbilo contagia e conforta quem está na poltrona, mas incomoda ver quem sempre esteve naquela condição não ter a esperança como os outros. Ele foi e sempre será cego, e seu desejo pode não mais ser sonhado agora por ser visto e poder, conseqüentemente, ser recusado.

Minha descrença no mundo e no ser humano fez-me pensar que talvez fosse melhor não enxergar. Quiçá fosse melhor não conhecer as pessoas pela sua altura, pelo seu peso, pela sua cor, mas pelo que elas nos transmitem. Não enxergar a fome, as doenças, os maus tratos, talvez fosse mais confortável.

Engano meu novamente. Tudo isso, creio, é passível de ser sentido. A falta de um sentido aguça outros. Percebemos da mesma forma ou pior. E não enxergar não é solução para menos incômodos. Há tantos que enxergam, mas não enxergam. Não enxergam a miséria ao lado, uma carroça que emperra o trânsito, uma família acampada embaixo de um viaduto, o senhor dobrado à entrada do Conjunto Nacional sempre com sorriso no rosto, os olhos desconsolados de uma criança que estende a mão.

Agradeço enxergar, agradeço poder ver as coisas e as pessoas ao meu redor, ver um vôo de um pássaro, ver o azul do céu, ver as águas intermináveis de uma cachoeira, ver as ondas incansáveis da imensidão do mar, ver lágrimas e sorrisos. Agradeço ver o que tantos outros não vêem apesar da impotência diante de tanta maldade, mediocridade, miséria. Que a amaurose de tantos não me infeccione e eu continue sempre a ver a crueza do mundo, pois o belo é fácil de ser visto.

P.S.: Confesso não ter lido o livro de José Saramago. Confesso minha deficiência na irritação com a forma distinta de escrever do autor, minha cegueira por não perseverar com a pontuação inculta e com diálogos que me impacientaram em não discernir se de narrador e de quais personagens. Um dia, quiçá, abrirei os olhos. 5, 4, 3, 2, 1...

sábado, 13 de setembro de 2008

Meus olhos pequeninos

Assustei-me com o interesse. Surpreendi-me com palavras. Encantei-me com os olhos. Apaixonei-me pelo beijo. O inverno de dias nublados agora é primavera de dias ensolarados. Não é enclausurar-se num abraço, são mãos dadas para a liberdade. É acordar sorrindo quando já se despertou em pranto. É a alegria que um dia se pensou distante e hoje é presente. É um abraço apertado para não se deixar perder o que foi encontrado. É um estar junto sem esforço porque é simples estar ao lado. É estar bem tão natural e querer bem tão conseqüente. São uns olhos pequeninos que iluminam olhos desnorteados.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Esparrelas da vida

Menos preconceitos, menos máscaras. Busca diária incansável. Há os que não se importam, mas quero a vida em sua maior autenticidade possível. Se outros não são assim, com estes, sim, não me importo. Mas como saber quem se importa ou não? Prefiro o bruto ao lapidado, mas retirar disfarces é também lapidar-se. Como é difícil desejar alguma coisa se esta uma coisa é também outra coisa. Não é conversa de doido. É um mundo de doido. E ainda morrerei doida... E antes da vida tornar-me doida, ela me cobra ecletismo, põe-me diferenças no caminho para saber contorná-las ou afundar-me nelas, faz-me analisar para a cada dia enxergar com outros olhos os personagens do palco que se esbarram comigo nos corredores de um teatro.

Disseram-me que todos usam disfarces o tempo todo. Eu, pelo menos, procuro desnudar-me cada vez mais do prescindível, mas, ao mesmo tempo, a maquiagem me condena, denuncia-me em minhas mentiras. O livre-arbítrio permite-me esconder minha feiúra e que venham as chibatadas em praça pública. Ninguém é obrigado a se vulnerabilizar, mas é no mínimo estranho preferir ser personagem a autor. Qual a graça de chegar ao fim com histórias de outros, a narrar acontecimentos personificados de nós mesmos? Que eu chore, que eu ria, que eu ame por mim mesma, e não pela minha personagem. Não sei quem sou, mas sei que sou o que quero ser.

domingo, 7 de setembro de 2008

Ele passarão, eu passarinho

Não se sabe com que intento um passarinho pousa em nossas mãos ou retorna de outros ares. Olho para ele e não decifro o que há em seus olhos. Tenho medo que alce vôo e parta como outros. Não como outros exatamente, pois este é o primeiro alado que se aproxima. Por que será que os ventos lhe trouxeram para perto? Semelhanças intrigam-me e questionam-me se não seria uma prova de aprendizado ou a prova da possibilidade.

A pardalzinha fica entre verdes a admirar seu vôo azul. Modesta, ela quer o que lhe parece grande... Como para engrandecê-la ou porque já não suporta mais pequenezas. Talvez ele seja miúdo como um macaco que lhe fez troças, mas talvez não seja. Enganamo-nos com as aparências, mas não há regra, não há premonição. Gosto de dar chances ao acaso e ao que a vida traz.

Às vezes, vejo-o um beija-flor. Faz-me graças com suas asinhas inquietas e logo parte para outras flores. Mas ainda volta para me fazer sorrir. Até quando voltará, não sei. Admirar-lhe faz-me bem. Como um bom livro e um bom perfume, gosto de postergar o prazer que proporcionam, reduzo a velocidade das palavras e economizo nas gotas pelo corpo. Diferentemente de outras vezes em que devorei migalhas com apetite voraz.

A surpresa pode ser a obviedade invisível aos olhos dos viciados na linha retilínea e monótona da vida que os impede de acreditar no improvável. A visão romântica do caminho ou de vôos faz crer no impossível possível. E por que não?! Ou que então decida bater asas e voar longe... Deixo a vida fazer o que ela faz melhor...

"Se as coisas são inatingíveis, ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes seriam os caminhos se não fora a presença distante das estrelas."
Mario Quintana

sábado, 6 de setembro de 2008

Te espero

A I Bienal Internacional de Poesia de Brasília (I BIP) me fez recordar algo de menina. Meus pais não têm vinis clássicos do Led Zeppelin ou dos Beatles, mas têm a jóia Capinan – O viramundo – 21 anos de tropicalismo. Lembro perfeitamente que gostava de ouvir uma faixa específica sentada ao chão e com o vinil na mão. Gostava de me emocionar junto a Capinan ao recitar Te esperei. No decorrer de sua leitura, sentia sua emoção e me emocionava junto como se vivesse o que ali escrevera. Uma pena não poder mais sentir a comoção, mas o LP guardado preserva a emoção.

Te esperei
(Capinan)

Te esperei vinte e quatro horas ou mais
De cada dia que eu vivi
Te esperei mais de sete dias por semana
Sem um só dia te trair
Te esperei mais de nove meses
Sem poder parir
Mais de doze meses cada ano
E te esperava até um novo século surgir
Te esperei na mesa
Te esperei na cama
Olhando as estrelas te esperei na lama
Te esperei bebendo
Te esperei calado
Embriagado e gritando por aí
Te esperei com fome
Te esperei sem nome
Uma vez chorando e outra sem sorrir
Num barraco numa esquina
Te esperei pelo mundo
Te esperei sempre assim
Num buraco sem fundo
Por dentro de mim
Mata derrubada maré poluída
Nas encruzilhadas pelas avenidas
Te esperei no sangue
Te esperei no mangue
Água derramada vida proibida
Hóstia consagrada pena colorida
Te esperei de gravata de luva e sapato
Com todo recato nua e mal vestida
Te esperei toda morte
Te esperei toda vida
No regato no esgoto
Te esperei no mato
o eclipse lunar
No luar neon na escura solitária
No clarão das luminárias
No ponto de encontro
Entre a bela e o monstro
No Raso da Catarina
Na profunda dos infernos
Te esperei nos ases
Te esperei nos ternos
Te esperei na tua
Te esperei na minha
Te esperei Clarice
Te esperei Virgínia
Te esperei tantos marços
E mais fevereiros
Esperei por inteiro e espero ainda
Neste novo janeiro te dar boas vindas

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Minha linda poetinha

Não tarda!

Não sei por que
Escovei os dentes
Perfumei a boca
Pintei os lábios
Se hoje não vou ser beijada!

Vou esperar...
Não perco nada

E vou vivendo
As minhas horas
Limpas
Perfumadas
Pintadas
Com a esperança
De ver chegar
Na boca
De um dia iluminado
O beijo desejado...
Que não tarda!

“Toda nudez será castigada”?

Sinto-me tirando a roupa
Diante de ti...

Se vires as celulites
Dos meus versos acanhados
Disfarça... diz que não viste
Que não viste e está acabado!

Se vires aquelas marcas
De “perebas da infância”
– mostra delicadeza! –
Diz que nunca tinhas lido
Tantos sinais de beleza

Aquele bumbum caído
- versos de flacidez –
Tira os olhos compreende
A nervosa timidez
Da poeta que se mostra
Na sua primeira vez!

Poemas de Tiana Ribeiro do livro Gaveta de guardados

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Envelheço
Ela parece sumir
Mudou de endereço
Mas permanece ali
Ela está sempre lá
Em algum lugar
Não há de me abandonar
Minha impaciência tenaz

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Luluzinhas e suas interrogações

Até hoje um comentário de uma amiga me vem à mente. Ele ressurge de tempos em tempos pela incompreensão que tive da mensagem, assim como não entendi ter saído daquela cabecinha. Uma figurinha, como ela mesma se define, que “foge a todos os esquemas”. E assim ela é, de fato. Com ela convivi mais de sete meses diariamente. Uma santinha encrenqueira por quem tenho imenso carinho, mas que por diversas vezes discordamos enfaticamente sobre os grandes assuntos universais e individuais.

Duas cancerianas típicas, emocionais, apaixonadas, sonhadoras, separadas por uma boa diferença de anos. Eu precisava falar isso porque outra descrição que ela carrega de si mesma é de que é uma “velha”. Bobagem dessa santinha. A velhice está na amargura e na falta de esperança diante da vida, e ela é extremamente doce e auspiciosa para considerar-se velha.

Numa noite, entre delícias de países asiáticos, eu, ela e mais duas cabeças femininas pensantes falávamos sobre o amor, sobre homens. Não com o preconceito que possam imaginar quando mulheres se reúnem, por isso, o “pensantes”. E ela confessou que não se casaria novamente ou que então nem houvesse se casado se pudesse voltar no tempo.

“Há tanto homem interessante no mundo que eu não queria ficar somente com um”, assombrou-nos. Estupefata, perguntei-lhe: “Que raio de lugar é esse onde há tanto homem interessante?”. Rimos, é claro. Rimos talvez porque ela enxergue o que não vemos; ou porque não enxergamos homens interessantes nessa quantidade que ela mencionou; ou porque, se eles existem, eles não nos enxergam; ou porque definitivamente não encontramos um sequer.

E a incógnita permanece... Deixo somente outro comentário de outra querida sócia do clube: “Universo, se vira!”

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Paixões e manteigas...

Ser um bicho apaixonado dá trabalho. Recentemente aprendi a apaixonar-me por palavras, gestos, diálogos, personagens. Não que isso substitua a realidade de um beijo ou de um abraço, mas a inexistência de um busca a existência de outro. Estar à deriva permite essa liberdade, esses encantos, novos amores.

Emoções são o impulso que me faz locomover pé ante pé. Uma canceriana ao quadrado precisa emocionar-se com uma bela atitude, uma doce palavra e surpreender-se constantemente. Do contrário, o tédio se apropria e tudo recebe uma coloração cinza, torna-se sem graça, sem calor, sem vida.

É como aquela manteiga que precisa ir à geladeira para não permanecer mole todo o tempo. Mas há aqueles que a retiram e esquecem de devolvê-la à prateleira refrigerada. E então ela tem de fazer um esforço absurdo para mover-se sozinha e buscar o local mais fresco possível.

É assim… Instantes dura, instantes derretida. Alguém lhe disse uma vez que não tinha medo de montanha-russa como se isso fosse enganá-la. Mas a manteiguinha aprendeu em seus derretimentos que o que se aprecia é aquela estrada longa e reta, sem surpresas, sem buracos; com a temperatura sempre constante. E o engraçado que ela percebeu que a quem isso mais apetece são os transeuntes dos caminhos mais bifurcados e intransitáveis; além de insuportavelmente oscilantes na escala Celsius.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Mãe desnaturada

Duas semanas “cult”, diriam alguns. Por isso, a distância do meu filhote eletrônico, mas fui ameaçada de sua morte por um amigo. Disse-me ele que um blog é como um bichinho, que precisamos alimentá-lo diariamente se não ele morre. Todos os dias é um exagero, disse-lhe. Trabalho, leituras, sociabilidades, lazer. Não há ócio, a não ser aquele dos finais de semana (ou não) em que sono, sede e dor de cabeça resolvem confraternizar num só corpo.

Há tempos não saía tanto de minha toca e absorvia tanta coisa boa, tantas idéias, tanta criatividade. Talvez depois de digerir o excelente, eu consiga elaborar o razoável. Preencher o tempo excedente ao trabalho em sessões de cinema, salas de teatro, em frente ao palco ao ar livre, ao redor do Pátio Brasil, numa cadeira para deliciar um picolé de cupuaçu ou um sanduíche divino, ver uma amiga segurar o canudo e festejar seu diploma, torna o tempo escasso no teclado do computador.

A grandiosidade me apequena e ao mesmo tempo me põe nas pontas dos pés para crescer alguns milímetros. Os últimos dias então foram de ruminação e digestão. E de sonhos... Estive na mesa do Congresso Internacional do Medo, vivi o holocausto que o Stones me mostrou, fui a mulher estúpida e vi os homens canalhas de Acqua Toffana, compus melodias da velha guarda da Portela em O mistério do samba, deliciei-me no norte com o cupuaçu, fui ao céu de mozarela e tomates, descobri a felicidade de saber ser o que sou em Édipo, enlouqueci junto a Lima Barreto em Estação terminal, encontrei meu alterego e quis matá-lo para suportar melhor a vida em Crónica de José Agarrotado... E ainda há tanto para ver, assistir, presenciar, participar, conhecer, aprender, crescer... Tempo, meu “veneno remédio”*.

“(...) Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo”
(Oração ao tempo – Caetano Veloso)

* A expressão é parte do título de José Miguel Wisnik no livro Veneno remédio: O futebol e o Brasil

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Congresso Internacional do Medo

O título já é suficientemente atraente. Baseado no homônimo poema de Carlos Drumond de Andrade o torna irresistível. E o espetáculo ainda supera as expectativas. A peça é o mais novo trabalho do grupo Espanca!, uma trupe de Belo Horizonte, que venceu com este trabalho o II Projeto de Co-Produção do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil.

Oito artistas no palco mantêm a platéia atenta durante 80 minutos e arrancam risadas surpreendentes em um diálogo trágico e cômico. Como em uma conferência, cinco deles apresentam-se sentados em uma mesa com seus respectivos copos d’água e plaquetas com seus nomes. No início, permanecem calados por desconhecerem os motivos de estarem ali.

De origens diferentes e idiomas estranhos, cada um discorre sobre as especificidades que conhecem. Para decodificar a língua em que falam, há uma tradutora que, ao final, torna-se dispensável, pois, apesar das diferenças, todos se entendem. Nascimento e morte ocorrem no palco como para enfatizar o medo que nos assombra e de que fala Drumond em seus versos.

É difícil descrever o espetáculo, e nem conseguiria. É preciso assistir para sorrir, pensar e aplaudir. É uma pena olhar para trás e ver cadeiras vazias, mas quem teve o prazer de estar na sala Martins Penna do Teatro Nacional de Brasília do dia 26 ao dia 28 de agosto sabe o quanto valeu a pena. É aconselhável levar carderninho e caneta, pois como a amiga que me acompanhou, ela gostaria de ter registrado algumas fantásticas expressões. Um exemplo: “brindar” na língua de um dos conferencistas é “estalar de vidros”. A criatividade é admirável.

A peça integra o Cena Contemporânea 2008 – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Saiba mais no site

Grupo Espanca!

Formado em 2004, em Belo Horizonte (MG), o Grupo Espanca! conquistou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e o Shell de melhor dramaturgia em 2005, já com seu primeiro trabalho, Por Elise, que também recebeu, em 2006, o prêmio SESC SATED-MG de melhor espetáculo e melhor texto. Escrito e dirigido por Grace Passô, que também é atriz do espetáculo, Por Elise foi indicado ainda pela Revista Bravo! como um dos 100 melhores espetáculos de artes cênicas produzidos nos últimos oito anos no Brasil.

Congresso Internacional do medo
(Carlos Drumond de Andrade)

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Foto: Calixto

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Viagens de “anasritus” à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado*

Como não bastasse o domingo ser normalmente um dia preguiçoso (ainda mais depois dos inevitáveis plantões), uma conversa um tanto filosófica fez cair aquelas coisinhas salgadas que pululam (tantas visitas ao dicionário têm de servir à alguma coisa) dos olhos. Um papo sério sobre a vida, o ceticismo, o presente e o futuro, o inferno. Concluímos que o fogo arde aqui mesmo, como muitos já sabem, mas não porque exatamente se sofre aqui na Terra. Mas porque são necessários tantos ardis para se proteger que... Que canseira!

Não gosto de estratagemas. A própria palavra por si só, o signo já é feio. O significado então... Planos, esquemas, subterfúgios... Um palavreado que não constava do dicionário da minha vida, mas que fui aconselhada a tratar de fazer os tais acréscimos. Ele abriu meus olhos para tanta coisa que me perdi no meu já perdido mundo. Fiquei sem saber como agir e como desaprender o que aprendi a ser. Não sei ser diferente. Quantos no mundo fariam isso? E conseguem de fato?

O diabo é que me pergunto demais. Vejo-me como aquelas crianças com os olhos arregalados cheios de curiosidade. E, quando vejo esses olhinhos, fujo para não ter de dizer a verdade ou simplesmente por não saber responder. Eu bem queria fugir de mim quando essas interrogações vêm à tona... Dá um trabalho danado, a cabeça não pára, eu não durmo... E de nada adianta porque para quase tudo na vida não há respostas. De um pouco adianta porque os neurônios correm freneticamente e isso é bom para afastar o Alzheimer. Mas ainda estou nova para isso. Estou?

Mas adoro essas conversas. Por mais que doam algumas conclusões, é melhor do que seguir só andando, sem paradas. E quando há companhia para as intercaladas melhor ainda. Assim, não nos viciamos em nossos pensamentos, vemos e podemos admitir outros pontos de vista. Ao fim, chegamos a conclusão da “desconclusão”: é melhor eu continuar da forma como sou e que se dane o mundo.

* Uma brincadeira com o título de um livro do meu querido e “monografado” escritor Samuel Rawet:
Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado, 1970

domingo, 24 de agosto de 2008

Verdurinhas no palco

No castelo mal assombrado, um mineiro com traços de Gérard Depardieu desassombra com sua simpatia, com sua guitarra tranqüila, com seu falatório. Uma horta com bons frutos cultivados desde a década de 60, dos tempos do Clube da Esquina. Toninho Horta é como uma daquelas figurinhas queridas que mal se acaba de conhecer e se tem por elas um sentimento de carinho.

E não é à toa. Sua irmã, Leila Horta, o acompanha em algumas músicas com sua flauta. Ao final, Toninho brinca, quer pegá-la no colo e lhe faz reverências ao sair do palco. O rosto caricato não me arrebatou como outros, mas sempre vale a pena conhecer o desconhecido.

Toninho Horta:
5º melhor guitarrista do mundo pela revista britânica Melody Maker em 1977
7º melhor guitarrista em 1978 pela mesma revista

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Dulces sueños

O céu já bem negro, deito. À espera do sono que me acalenta, imagino. Em vez de um teto maciço e branco, invento um buraco por onde vejo a escuridão do céu com seus pontinhos brilhantes. Penso se cada estrela está ali fixa todas as noites em toda a existência do mundo. Será que elas não mudam de lugar, ou caem com a velhice, ou se renovam a cada noite, ou são anciãs e imortais e que nós vemo-las iguais às vistas pelos homens das cavernas?

Fico nessas delongas todas as vezes em que o mergulho no sono me parece difícil ou até impossível. E, constantemente, os sonhos acordados são tão bons que esqueço de dormir e prefiro permanecer alerta para viver as fantasias. Mas lembrar que amanhã tudo começa novamente me faz agarrar o travesseiro e enrolar-me no edredom como que chamando o sono que não vem. Quero sonhar e ao mesmo tempo preciso dormir para acordar cedo e enfrentar mais um dia de trabalho.

Depois de horas de um chá-de-cama que o sono me dá, desisto. Invento personagens, bolo histórias, regozijo-me das delícias que vivo. Invento que estou na garupa de Che Guevara de braços abertos com o vento no rosto e chego à bela Buenos Aires. Hablo un español perfecto. Alan Pauls me convida para um tango e me fala da relação intrínseca triste que há entre a dança e o seu país.

Como se fosse possível conhecer toda a Argentina em apenas alguns segundos, vôo para outro sonho. Sozinha em um jipe com a melhor trilha sonora de todos os tempos, chego à Havana. Ressuscito todo o Buena Vista Social Club como se estivessem a cantar para me receber. Encanto-me e é uma alegria profunda. Como sair de um sonho desses? Vou às praias paradisíacas da ilha e as cores do céu e do mar se confundem, se encontram, são uma só. A pele ardida de sol é um deleite ímpar na minha real fantasia.

Do outro lado da tela, ele me diz gostar da França, da Paris de Piaf. Yo hablo de mi Buenos Aires querido, de mi Cuba que yo rezo para que Fidel no muera mientras sueño. Invento um país em que todos os outros são miniaturas e cabem todos em um só. Encontramo-nos em um café, não de Cortázar, não entre cronópios, famas e esperanças. Sentamo-nos, sim, em um café, com um jardim de rosas perfumadas atrás, com músicos de salsa e tango que se revezam ao lado direito, vemos a vida acontecer em distintos costumes ao lado esquerdo, e, à frente, o infinito nos traz mar, morros, montanhas.

Ele fuma o charuto cubano enrolado nas cochas de las chicas. Eu bebo uma tradicional sangria espanhola. Ele me fala um francês colado ao ouvido que não quer jamais sair dali. Eu, à la dançarina de flamenco, falo baixinho em italiano que podemos sonhar o quanto quisermos. Embriagamo-nos de sonhos, viagens, vôos, pernoites. Um tremelique distante desperta Ana Rita e o país das maravilhas. Inebriada, acordo como aquela canção de Zeca Baleiro. “Hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado, de bater na porta do vizinho e desejar bom dia, de beijar o português da padaria”.

Este é o óleo que mantém a engrenagem em ordem, para evitar que as peças envelheçam, que a boca azede, que o coração se empedre, que a visão se converta numa neblina, que a mente se apegue ao passado. São tantos os sonhos que cada um poderia ser transcrito em um imenso tomo, com histórias, diálogos e personagens completamente diversos de cada volume. De pé, pronta para seguir para o trabalho, abro a porta do carro, mas uma buzina me impede de adentrar o veículo. Che Guevara, em sua motocicleta, pega minha mão e diz: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

Mal dá o recado, desaparece. Entro no carro e pego a direção do trabalho. Sinto saudades dos sonhos e, em particular, daquele brasileiro que fala francês, com ar de espanhol, com os pés de tango, que fuma um charuto cubano, e que aceitaria sonhar comigo nas pirâmides do Egito, na Cordilheira dos Andes, encontrarmo-nos com elfos nas rochas da Islândia, nadar junto a tubarões no Recife, fazer um rally nos desertos da África, que ele seria Shah Jahan e tivesse construído o Taj Mahal em minha memória. O encantamento onírico me alegra por todo o dia para encontrá-lo novamente em minhas viagens no negrume do céu.

Para um amigo a quem confidenciei, com quem troquei e reinventei sonhos...

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Matemática inversa

Reinventar-se porque é natural. Somar-se porque até a mais firme subtração acrescenta. Talvez o “menos” seja mais do que qualquer aparente acréscimo. É no desencontro que se encontra, é no perder-se que se acha, é no caos que se organiza, é no zumbido que se pacifica.

O que se perde é porque já deixou, já foi. Fica o que pode ser somado. O que permanece é o que não pára de acrescentar. Não há pressa e não há instante que paire. A monotonia engana com sua aparente morosidade, porque nela mesmo acontece e faz acontecer.

para os sabores e dissabores das lentas e corridas horas de nossos finitos e intermináveis dias

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

“Quer dormir comigo?” ou “eu te amo!”?

Em um breve espaço de tempo, percebo em coisas que li e assisti que um assunto permeou todos eles. Sexo. Palavrinha pequena que parece ser a força centrípeta de todo o universo. Não apenas a procura por ele, mas por ele ser qualquer coisa que move qualquer coisa. Como se tudo na vida – relacionamento, carreira, família, amizade – fosse compreendido a partir dele e para ele. Será?

Não quero tratar de puritanismo, conservadorismo, mas será que isso é a modernidade ou somos nós mesmos que antes éramos dissimulados e hoje tratamo-lo com maior facilidade? Aprecio a idéia da liberdade, da escolha, do livre-arbítrio, mas não me apetece a questão simplesmente instintiva de animais que somos. Senão, o que há acima de nossos pescoços poderia ser ainda menor...

Esses pensamentos se iniciaram após assistir o filme de Murilo Salles, Nome próprio, premiado nesta segunda-feira no Festival de Gramado com melhor filme e melhor atriz. Leandra Leal sim, mas o filme?! (na minha débil opinião, um longa banal, fraco, sem conteúdo). Não sou gabaritada para criticá-lo, mas tantas cenas de sexo fizeram-me crer que esta era uma das saídas, senão única, que a protagonista buscou para suas aflições. Ok... Cada um com suas válvulas de escape, mas algo de ruim me tomou após 120 min sentada em uma poltrona.

A falta de sentimento e de envolvimento me entristece. Por um lado, as pessoas são mais acessíveis; por outro, são autoproclamadas solteirões ou solteironas ou sozinhos por convicção. A acessibilidade de que falo é aquela de uma ligação de madrugada, de um convite para se dormir junto. O solteirão e a solteirona ou os sozinhos por convicção são aqueles que se divertem, estão abertos a conhecer outras pessoas, mas sempre impondo limites a si mesmos e a quem se aproxima.

É como aqueles carros que possuem GPS. Se você está acima da velocidade, ele apita para avisar que há radar mais à frente. Ou seja, algo nas pessoas alerta para “opa, cuidado, ali você pode se apaixonar, ali você pode se machucar”. E qual o problema nisso? Quer dizer, agora não sei mais o que pensar... Enquanto me apaixono como Vinicius de Moraes, me pego pensando em uma bela música de Dorival Caymmi*. Dói muito um coração partido. Quem nunca chorou dias e noites intermináveis, emagreceu porque a dor bastava como alimento, achou que não sobreviveria numa via de mão única?!

Eu mesma tenho minhas opiniões e eu mesma me desmorono com elas. Mas, ainda assim e apesar de tudo, não acredito que se seja feliz somente com conhecimento, cultura, erudição, dinheiro, bens materiais, viagens. As pessoas e a vida, mesmo com suas maldades e ilusões*, nos causam sensações tão indescritíveis que talvez eu não soubesse viver sem elas.

Após meses e anos, são tão boas as lembranças que se tem de um “eu te amo”, de um sorriso à sua espera num aeroporto, de uma amizade que ficou após o fim de uma história. Sofrimentos e quedas existem, machucam, mas a vontade de viver algo semelhante de novo é tão forte que parece se esquecer das mazelas que vêm de brinde, ou pelo menos elas preponderam. Mas não há nada que seja de todo ruim, felizmente, ou de todo bom, infelizmente. E tudo na vida é assim. Por que não viver?

*O próprio Dori vira o jogo no final de sua música:

Saudade da Bahia

Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
‘Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão’
Ai, se eu escutasse hoje não sofria
Ai, esta saudade dentro do meu peito
Ai, se ter saudade é ter algum defeito
Eu pelo menos mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa me confessar
Ponha-se no meu lugar
E veja como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz
Vejam que situação
E vejam como sofre um pobre coração
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro para ser feliz
(Dorival Caymmi)

domingo, 17 de agosto de 2008

Marco Pereira – Celebração e despedida

Uma noite que começa com Eu sei que vou te amar é prenúncio de excelência. Assim, iniciou o show o violonista e compositor Marco Pereira, que transformou o Clube do Choro numa espécie de uma grande roda de amigos. Nas primeiras músicas, portou-se como paulista que é, de poucas palavras, meio nervoso. Mas, logo depois, mostrou-se carioca por devoção, com conversas e brincadeiras ao microfone e com uma seleção musical bem ao estilo boêmio do Rio de Janeiro de décadas atrás.

Além do hino de Tom Jobim que professa o amor eterno, tocou outras tantas perfeições do grande maestro brasileiro – Luísa, Passarim, Se todos fossem iguais a você –, já que este é o homenageado do projeto do Clube deste ano. Além dele, não puderam faltar Vinicius de Moraes, Baden Powell, Dorival Caymmi, Jacob do Bandolim, Radamés Gnattali, Cachimbinho, entre outros.

Triste foi o dia seguinte. Alguém em casa acorda maravilhado com a noite anterior e cantarola Dorival Caymmi. Mais tarde, tem-se a notícia da morte do baiano mais baiano do Brasil. Marco Pereira ainda conseguiu despedir-nos com as músicas da voz mais tranqüila que cantou mar e pescadores. É amargo viver na terra sem Caymmi, mas são doces a lembrança que deixou e a eternidade de suas composições e de sua voz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Bon jour! Bon soir!

Não, não quero a beleza clássica, tradicional, a olhos nus. Quero aquela encontrável na espontaneidade de um sorriso, na sinceridade de um olhar, na grandeza do perdão, na humildade da desculpa, na disponibilidade em ensinar, na curiosidade em aprender, num coração machucado que soube dar a volta por cima, entre outras coisas tão simples, porém tão raras.

O estereótipo da beleza cega, confunde, maltrata. Esta é uma beleza fácil, fugaz. Quero a beleza difícil, permanente, percebida em trocas, no permitir-se e no deixar. Como um diamante bruto que brilha ao primeiro toque, e não aquele que brilha inadvertidamente em calçadas ou beiras de rio.

Quero a pedrinha encontrável num antiquário, não numa cara loja de jóias. Não quero a modernidade, a cidade grande, entre o buzinar de carros e o tilintar de taças, entre dólares e dolores, as mesmas palavras. Quero o eterno, o romântico, o fora-de-moda, “uma casa no campo”, entre o piar de pássaros e o café na cama, o fílmico, o literário, o poético, a melodia, o abrir a porta. “Eu quero inteiro, e não pela metade”.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O malandrão carioca

Luiz Melodia em um palco não é um show, é uma festa. Num visual de um verdadeiro malandro carioca – terno branco, camisa branca por fora da calça e sapatos bicolores – o cantor agitou a sala Villa Lobos do Teatro Nacional com sambas das décadas de 30, 40 e 50. O repertório integra seu último cd – Estação Melodia –, que inclui músicas de Ismael Silva, Cartola, Oswaldo Melodia (seu pai), Jamelão, entre outros compositores. Este é o 13º álbum de sua carreira.

Irreverência é o tom da festa. Brincadeiras com integrantes da banda, o andarzinho à la Charles Chaplin, o samba no pé de um autêntico morador dos morros cariocas, fazem-nos sentir próximos ao artista. Não há distância, não há palco elevado, não há artista e platéia. São todos juntos ao mesmo nível na celebração da boa música brasileira.

Um belo momento da festa é quando Melodia senta-se em um daqueles banquinhos altos e anuncia uma música em homenagem à sua gente do Morro de São Carlos, comunidade no bairro do Estácio, zona norte do Rio de Janeiro. Composta por Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, o sambista canta Gente humilde numa linda e carinhosa interpretação. O interessante de Luiz Melodia é sua história e relação com o morro. Não faz disso piedade ou “espetáculo da miséria”. Sua origem e sua vivência são naturais, espontâneas e inegáveis.

Ninguém nunca foi a um show em que um artista possa dizer: "Não riam. Vou precisar sair do palco e vocês fiquem com essa banda maravilhosa". Após risadas e umas duas músicas sem Melodia, ele volta de sandálias e com uma camisa estampada com coqueiros. Ainda mais irreverente, Luiz circula pelas composições de anos atrás. A despedida de palco é única. Melodia e toda a sua banda de pé na percussão cantarolam o sambão de seu pai Linda Tereza. Um fim que não chega nunca e quando termina dá uma saudade e uma certeza de nunca perder um show de Luiz Melodia.

“(...) São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar”
(Gente humilde)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

República das bananas! E das melancias...

Em contraste a Sampa de Caetano Veloso, a cantora e compositora paulista Ná Ozzetti é pura elegância. Com discrição e timidez no palco e uma voz exuberante, ela cativa o público. Em show em homenagem a Carmem Miranda, ela e sua banda tocaram os maiores clássicos da “pequena notável”, ressuscitaram o maior ícone da brasilidade, interpretaram a ingenuidade das letras e, sem dúvida, marcaram a platéia com o bom gosto.

Mas, ao mesmo tempo em que as bananas de Carmem Miranda marcaram o Brasil, agora é a vez das melancias taxarem o país com o mau gosto, com a vulgaridade do sexo, com o erotismo baixo do corpo feminino. É de sentir horror, pavor e repugnância uma mulher se prestar a um papel extremamente obsceno em público, mas que gera uma comoção nos homens pela gigante bunda brasileira.

Não se aprecia mais a brasileira pelo seu gingado, pelo seu balançado à semelhança de um poema, como cantou Tom Jobim. Admiram-se movimentos sexuais mostrados a quinhentos mil machos enlouquecidos por uma máquina de bunda cantados ao som de um sujeito com a alcunha de Créu.

Cadê a “garota de Ipanema” e o “menino do rio” da época mais frutífera brasileira? Onde se perderam o bom senso, o bom gosto, o refinamento das melodias, o esmero das canções, o carinho com que se trata a intimidade de um casal? Há os que garimpam, lustram, escavam, descobrem, guardam, cantam, reinventam as boas coisas brasileiras. E é nesses e em Ná Ozzetti que me apego na existência da exuberância, da excelência, da sensualidade elegante, do querido amor, da beleza da vida.

sábado, 2 de agosto de 2008

A benção, Pepeu!

Não é a toa que esse gênio brasileiro é um dos dez maiores guitarristas do mundo e o maior da América Latina. Por mais que se diga, é preciso vê-lo e ouvi-lo de perto, para sentir sua paixão, sua vida dedilhada nas entranhas de uma guitarra. Os trejeitos com os lábios, o fechar dos olhos, o levantar-se da cadeira, são a demonstração de uma paixão que não cabe em si e da genialidade que transborda em uma alquimia de sons e ritmos, brasileiros e estrangeiros. Do bolero a salsa, com direito a samba, choro, jazz, bossa-nova, MPB, frevo, baião, maracatu, reggae, sempre, é claro, com uma sua pitada extragrande de heavy metal, é uma mistura que mostra que tudo é possível com aquela dupla.

A proximidade com o público que o Clube do Choro permite torna explícitas as cenas de amor entre Pepeu e sua guitarra. Ali, pode-se testemunhar a intimidade dos dois, como se ambos fossem os únicos a dominarem determinada língua. Ambos parecem feitos um para o outro e a platéia assiste a orgasmos do artista e a gemidos do instrumento. Uma sinfonia inesquecível e que embevece a qualquer um com sensibilidade e bom gosto. A grandeza do artista está em também apresentar seus músicos com freqüência e dar-lhes instantes de um verdadeiro show. Enaltece todo o tempo seu irmão, Jorginho Gomes, baterista, principalmente quando diz que “sem ele, ele nada seria”.

Pepeu Gomes, com 56 anos, mantém a jovialidade e a sensualidade. Nem com as raízes do cabelo recém-pintadas, suspeita-se que os anos tenham passado para ele. Simpatia e bom-humor são outras características visíveis naquele rockeiro de corpo e alma. Ao final do show, após cerca de duas horas de uma paixão contagiante, Pepeu consegue emocionar ainda mais o seu público. Arrepia-se ao ouvi-lo tocar o Hino Nacional brasileiro naquelas cordas. É uma sensação indescritível... E, como não poderia deixar, ele termina de vez o show com uma palhinha de Satisfaction, dos Rolling Stones. Simplesmente delicioso, inesquecível e arrebatador! Definitivamente, um gênio, um artista, um músico, uma pessoa, um homem apaixonante!

Não sabe quem é Pepeu Gomes?

Pedro Anibal de Oliveira Gomes, conhecido como Pepeu Gomes, é cantor, arranjador, compositor e multi-instrumentista. Ele aprendeu a tocar violão de ouvido, na infância, em Salvador, sua cidade natal. Aos 11 anos, formou sua primeira banda, Los gatos, e, em 1966, com 14 anos, tocou profissionalmente com o grupo Os minos. Com sua próxima banda, The Leif’s, acompanhou Gilberto Gil e Caetano Veloso no lendário show de despedida pré-exilio Londrino em Julho de 1969. Em 1970, com Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Galvão e Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), formou o grupo Novos Baianos. Depois de sua carreira solo consolidada, apresentou-se seis vezes no Festival de Montreaux, tocou no Rock in Rio I, II, III, no Free Jazz, e fez varias apresentações no exterior.

Pepeu Gomes foi considerado pela revista americana Guitar World, um dos dez melhores guitarristas do mundo e o melhor na América Latina na categoria world music. A edição brasileira deste mês da revista Rolling Stone elegeu os melhores discos da música brasileira. Como maior disco brasileiro de todos os tempos, foi escolhido Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos, composto por Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Um passe para a paz










Paz! Que coisa mais difícil em manter... Antes, parecia ser só uma questão da paz somente como a diplomacia entre os países, o que não é nada pouco. Como se paz = ausência de guerra. Mas ela é batalha dentro de nós mesmos, travada contra sabotagens, próprias e alheias. É uma busca incessante e interminável. Qualquer descuido e um míssil ou uma fagulha podem pôr tudo a perder e nos fazermos recomeçar a luta. É uma fronteira tênue, uma descostura num delicado tecido por onde ela se esvai. Mas é preciso recuperá-la para sobreviver entre monstros. Monstros que somos, criamos, sem querer procuramos, sem desejar encontramos, sem perceber nos tornamos.

É preciso andar com linha e agulha para ao primeiro instante costurar o que foi desfeito. Se se demorar, o buraco aumenta e demora-se mais para trazê-la de volta. É uma procura tão constante que ela própria parece uma guerra. Não há descanso. Ser diplomático com si próprio às vezes é mais difícil que ponderar com os que estão próximos. E lidar com isso pode trazer dor. É preciso uma dose de egoísmo para não se afundar na areia movediça da vida que exige dar-se e doar-se.

A paz conquistada é uma vitória, mas mantê-la requer esforço, disciplina, controle de pensamentos. O cansaço nos olhos diante da impotência em ser sempre forte é, às vezes, inevitável. Mas é preciso enxugar e recomeçar, sempre. Porque não há cansaço que se prepondere perante a serenidade.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

O vestido

O vestido ainda pendurado no cabide. Sem estréia, me lembra o seu destino. De usá-lo para trazer prosperidade no ano que se aproximava. Mas ele permanece ali, pelo avesso para que os dias não o envelheçam, para que se mantenha novo para um próximo ano. Ainda com etiqueta e cheiro de novo, ocupa o espaço físico, porque o emotivo não lhe pertence mais. Não é dor, não é saudade. É esperança. Assim como a esperança que o trouxe para o armário. Não há pressa. Os dias sempre vêem novos e prometem a aurora que a ele lhe pertence. Está ali, guardado, sempre à espreita de vestir o corpo para o qual foi pensado.

Não é vestido de uma outra dona como o de Drumond (Caso do vestido). É um vestido vivo da cor de ouro para vestir um corpo morno, de pele alva, sem decote, com o qual sugere, não devassa. Não é peça de luxo e tampouco é lembrança. Há, sim, um vestido, não escondido, mas guardado, assim como o seu motivo guardado para ser vestido.

domingo, 27 de julho de 2008

Brincando com Hai Kais

Eu sou assim
Você é assado
Nós estamos fritos

Pele arrepia
Inverno maltrata
Nada alivia

Travesseiro colado
Corpo distante
Sonho acordado

Sinto seu tato
Durmo colado
Sonho de fato

Barco desliza
Água se afunda
Leve na brisa

Jogo flores
Intensos amores
Sem dores

Uma borboleta
Um escafandro
Mesma silhueta

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Selva aqui dentro II

Em menos de uma semana, em exatos cinco dias de disponibilidade, curiosidade e paixão, termino a leitura de um romance de mais de duzentas páginas. Ao fim, não repito a questão que deixei em texto anterior. Não desejo especular se aquilo tudo ocorreu na realidade ou não. Seria, no mínimo, indiscreto e inútil sabê-lo.

O que me ocorreu, surpreendentemente, foi a transposição da história para a minha vida ou a inversão da realidade para papéis que não escrevi. Fui Adriano Pontes, fui Lana Martins. Agora não me vejo como aqueles cidadãos que abordam atores e atrizes nas ruas. Vi-me nos personagens e questiono se todo leitor e/ou espectador se vêem nas páginas e tela à sua frente?! É narcisismo ver-se dessa forma ou é busca do conforto da semelhança?

O livro é delicioso, de fato, mas senti o gosto doce e amargo de suas páginas. Doce pela fruição da história, pelo despudor de cenas e personagens, pelo português bem escrito, pela convergência de admiração e realidade. Amargo por uma questão estritamente pessoal. Vi-me demasiadamente nas cenas e descrições do capítulo final. O desenrolar dos últimos acontecimentos tocaram-me no âmago, e o autor deixou-me sem chão… Li ininterruptamente para buscar o desfecho, mas ele propositadamente o deixa em reticências…

O gosto do encontro é acre-doce, bom e ruim, confortável e desagradável. É como se a língua não soubesse discernir qual sabor prepondera ao deparar-se com o alimento em sua boca. É um delicioso que intriga, incomoda, perturba. E o autor, em sua maestria, enfatiza o que sabe ser o seu intento e sabor. E, assim, mantém o suspense do leitor ao comunicá-lo para as próximas leituras. Ou melhor, não é bem uma comunicação, mas uma convocação. Sente-se falta de um ponto final, pois se busca o que é diferente no plano real, visível, tangível.

Infelizmente o livro não está disponível em estantes. Posso gabar-me de haver sido enviado por e-mail para o meu inexpressível deleite. Só posso esperar que o autor decida publicá-lo e ele possa integrar a minha modesta prateleira de livros, com uma dedicatória e um belo autógrafo, e que outros também possam deliciar-se. Parabenizo quem um dia foi meu professor. E, um dia professor, eterno mestre. "Tim-tim" a todos que habitam a selva, não se utilizam de máscaras ou os que dela se utilizam para que a invisibilidade seja uma defesa, uma necessidade ou uma mera exigência da loucura e da inadaptabilidade ao cotidiano, ao morno, ao linear.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Selva aqui dentro I

Neste último sábado, entre pintar as unhas e cuidar do cabelo, abri um romance no computador que há muito devia leitura. Acendo um cigarro para examinar as primeiras páginas a fim de saber do que se trataria a história. Envolvo-me. O belo português, a ansiedade pela história, a curiosidade pelos personagens e a admiração pelo autor fizeram com que eu lesse quase o capítulo inteiro numa tarde enquanto não chegava a hora do encontro com os amigos.

Por alguns instantes, cheguei a não querer me ausentar do quarto para manter a leitura até o fim. No entanto, não podia mais ficar envolta somente entre palavras escritas, precisava de contato humano, social. Além disso, quis também postergar o prazer pela semana que se aproximava. Ela me ocuparia após o expediente e me permitiria conhecer a literatura de um daqueles que considero seres mortais. Não digo isso para diminuir o autor. É pelo simples fato de tê-lo conhecido e tê-lo como uma de minhas metas profissionais.

Decido dar-lhe notícia da leitura de seu romance e ele me diz de sua falta de autoconfiança. Como? Como isso é possível em um dos seres mortais que tive o prazer de conhecer e a quem devoto tanta admiração? Não, este mundo está mesmo com os valores invertidos. Conheço outras tantas pessoas a quem não sinto qualquer admiração e se comprazem em levantar o nariz por serem não sei o quê… Resolvo dar-lhe uma bronca porque nada daquilo fazia sentido. Aos poucos, acho que ele recobra a lucidez e percebe a grandeza que é. Assim, espero. Ao mesmo tempo também espero que ele não a retome de forma a integrar-se ao grupo repugnante de raposas e urubus que às vezes são alguns jornalistas.

Noutra tarde, no terceiro dia completamente envolvida pelas mais de duzentas páginas de uma "selva lá fora", leio todo o segundo capítulo. É estranho ler algo de quem se conhece. Ainda não tinha tido esta experiência tão larga, feroz e exuberante. Descubro sentir-me como aquelas pessoas que abordam atores nas ruas com comentários sobre suas novelas televisivas. Fiquei imaginando se ele seria o protagonista da história, se havia realmente feito todas aquelas aventuras e se estaria tornando-se ou teria se tornado o "porco" do enredo. Obviamente, não tive ou ainda não tive a coragem de especular sobre isso…

...

Próximo capítulo em breve